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Domingo, 05 de maio de 2024

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De São Caetano do Sul (Brasil) a Melgaço (Brasilquistão): otimismo pessimista

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Somos mais Brasil ou mais Brasilquistão? Mais o segundo (desgraçadamente). O lado que deu certo no Brasil melhorou muito nos últimos vinte anos. Mas o problema continua sendo o Brasilquistão (o Brasil que deu errado ou que ainda não deu certo). O que os municípios brasileiros melhoraram de 1991 a 2010 foi impressionante. Quem revelou isso? O IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal), da ONU, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em conjunto com o Instituto de Pesquisa de Economia Aplicada (Ipea), do governo federal. Apesar dos progressos, continuamos sendo mais Brasilquistão que Brasil, porque (desde 1500) deliberamos construir um país fundado em cinco deploráveis pilares: 1) ineficientismo do Estado; 2) sistema político ilegítimo; 3) apartheid (divisão aguda de classes, separação, segregação, balcanização); 4) guerra civil (para conter e eliminar os reais ou supostos molestadores) e 5) “dialética da malandragem” (Antonio Candido), que é a mãe da corrupção. Enquanto não atacarmos na raiz esses cinco problemas capitais nunca deixaremos de ser (também) Brasilquistão.

O Brasil melhorou 47,5% em vinte anos? Sim. O IDHM, da ONU (que leva em conta três fatores: longevidade - expectativa de vida -, evolução da renda per capita e educação), possui uma escala, de 0 a 1. Em 1991, nosso IDHM médio era de 0,493 (muito baixo, segundo a classificação da ONU). Em 2000, na metade do segundo mandado de FHC, subimos para 0,612 (nível intermediário). Em 2010, último ano do governo Lula, o índice chegou a 0,727 (nível alto). Houve aumento de 47,5%. Extraordinário. Apenas 0,6% dos municípios estão na faixa mais baixa, contra 86%, em 1991. O aumento da qualidade vida foi maior nos municípios do Norte e do Nordeste (mais do que o dobro do Sul e do Sudeste). Em qual item mais melhoramos? Na expectativa de vida (alcançamos 0,816, nível alto – 73 anos). Na renda per capita chegamos a 0,739 (nível alto também). A defasagem está na educação: 0,637 (nível médio). Mas paradoxalmente, o que mais avançou (de 0,279, em 1991, para 0,637, em 2010). São Caetano do Sul (SP) tem o melhor índice do Brasil (0,862); Melgaço (PA) apresenta o pior do Brasilquistão (0,418): tem 25 mil habitantes, metade composta de analfabetos. É o retrato do Brasil atrasado nas áreas da saúde, educação e renda per capita.

Por que continuamos a ser mais Brasilquistão? Porque os serviços públicos são de péssima qualidade (na área dos transportes, da saúde, da educação, da segurança, da justiça etc.); porque o sistema político perdeu sua credibilidade (legitimidade). Para 81% dos entrevistados pelo Ibope/Transparência Internacional, os partidos são corruptos ou muito corruptos (o povo entende que os políticos cuidam mais dos interesses próprios que da população). Mas, sobretudo, porque nascemos divididos, em duas partes: os etnicamente integrados e os excluídos, segregados, balcanizados, discriminados, para quem só existe o presente (Luís Mir, Guerra civil). Para eles não existe nem passado nem futuro; convivem diuturnamente com o sofrimento, o analfabetismo, a falta de assistência, sobretudo médica, que se agrava mais ainda em razão da guerra civil que foi levada para as ruas por meio da militarização do controle social. A modernidade, prometida pelo Iluminismo e pela Revolução francesa, não chegou. A destrutividade das condições de sobrevivência, da esperança, da possibilidade de um dia se integrar na sociedade, é o imperativo imoral. De toda evolução do Ocidente, em termos de liberdades e garantias burguesas, nada lhes sobrou. Nos campos de concentração e recintos de segregação vivem somente insetos ou coisas, que são entidades consideradas distintas dos seres humanos; são um perfil sem identidade, um espectro sem rosto, um sobrevivente sem futuro, um corpo vazio; povoam pesadelos no lugar de sonhos, delírios no lugar de pensamentos, fome no lugar da opulência das elites. E tudo isso não é fruto da natureza, não é um “tsunami” vindo das profundezas do mar, sim, derivações das escolhas e eleições feitas pelos que dominam.

Há esperança de que um dia o Brasil seja um país civilizado? A esperança (esprança-eudaimônica) não morre, desde que lutemos todos os dias para que haja mudança. Esperança não ficar esperando ganhar na loteria. Se nada fizermos concretamente, estamos reproduzindo a epidemia narrada por Albert Camus no livro A peste (citado por Luís Mir, Guerra civil): “Ouvindo os gritos de alegria que subiam da cidade, Rieux tinha presente que esta alegria está sempre ameaçada. Pois ele sabia que essa multidão ditosa ignorava o que se pode ler nos livros, que o bacilo da peste não morre nem desaparece jamais, que pode permanecer durante decênios dormindo nos móveis, na roupa, que espera pacientemente nos quartos, nas adegas, nas malas, nos lenços e papeis, e que pode chegar um dia em que a peste, para desgraça e ensino dos homens, desperte a seus ratos e os mande a morrer em uma cidade ditosa”. A nossa peste (do Brasilquistão) é o ineficientismo do Estado, a desastrada representação política, o apartheid, a guerra civil e a dialética da malandragem. Os índices de desenvolvimento melhoram (sobretudo nos governos de FHC e de Lula), mas essas cinco pestes (chagas) não morreram. São bacilos resistentes, plantados no nosso território desde 1500. Toda comemoração, portanto, no nosso país, para quem consegue ler os livros, é sempre pessimista. Porque os livros dizem que essas pestes não desaparecem tão cedo. O lado certo dos governos de FHC e de Lula conviveram com essas pestes, sem eliminá-las (o que significa dizer que eles também devem ser vistos como FHnistão e LuloPAC-istão).

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