Olhar Jurídico

Sábado, 27 de abril de 2024

Notícias | Trabalhista

CASOS DE DESUMANIDADE

Procurador que acionou fazendeiros por explorarem irmãos sinaliza que erradicação do trabalho escravo está longe de ocorrer

Foto: CRAS Pontal do Araguaia

Irmãos foram submetidos a condições análogas às de escravo por mais de duas décadas

Irmãos foram submetidos a condições análogas às de escravo por mais de duas décadas

Após mais de duas décadas, dois irmãos que foram submetidos a longos anos de trabalho análogo à escravidão conseguiram vitória na Justiça por meio de ação ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho contra Odete Maria da Silva e seus filhos, Lucimar Justino da Silva e Vera Lúcia Justina Ataíde, proprietários da Fazenda Canoeiro. Na propriedade, localizada a cerca de 10 km do centro de Pontal do Araguaia (510 km de Cuiabá), os irmãos foram brutalmente explorados e tiveram todos os seus direitos trabalhistas violados. Os réus foram condenados a indenizar as vítimas depois de 20 anos de exploração.



O Olhar Jurídico conversou com o procurador do Trabalho Allyson Torquato Scorsafava, autor da ação civil contra os réus, sobre a entabulação do acordo entre as partes, a reparação dos danos a título de indenização, o trabalho desenvolvido pelo MPT na erradicação do trabalho escravo, bem como dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS).

Scorsafava também foi questionado sobre a possibilidade de imputação de penas mais duras aos exploradores, os limites desse tipo de exploração, e como o Estado atua com providências de acolhimento e assistência às vítimas e medidas de erradicação das condições análogas à escravidão.

20 anos de exploração
 
Após denúncia recebida em dezembro de 2019 pelo Centro de Referência da Assistência Social (Cras) de Pontal do Araguaia, Marinalva e Maurozã, 43 e 49 anos à época, foram encontrados trabalhando “descalços, com as roupas sujas e mau odor”. Ambos eram encarregados de serviços gerais, como a manutenção da horta, da represa e dos animais da propriedade.

As condições de trabalho e de vida no local eram de tal modo precárias que, após primeira visita feita, os profissionais do Cras retornaram à fazenda com o apoio da Polícia Militar, conduzindo os envolvidos à Delegacia de Polícia Federal, a fim de que prestassem depoimento.

“Então para se ter ideia, eles não sabiam usar um vaso sanitário, não tinham equipamentos de proteção nenhum, não tinham reconhecimento de vínculos, não tinham FGTS, proteção previdenciária, salário, não sabem mexer com dinheiro até hoje porque nunca tiveram salário. É uma situação em que tudo foi desrespeitado ali, todo direito do trabalho. Mas também, principalmente a dignidade da pessoa”, apontou Torquato.

Agressões e humilhações eram constantes e a violência física fazia parte da rotina de ambos os irmãos. Marinalva relata ter sofrido agressões contínuas, mencionando o uso de pedaços de pau e facão. Ela também teria sido vítima de abuso sexual. Em resposta à equipe do Cras, afirmou que “homens já fizeram coisas que ela não queria”.

Há, ainda, relato de ao menos um episódio grave de violência contra Maurozã, que, motivado por fome extrema, “furtou” uma galinha. Uma vez descoberto, foi levado pelo filho da ré para um brejo, onde apanhou pelo ocorrido. Ele acrescentou que o agressor possuía uma arma de fogo em punho.

A equipe do Cras ressaltou que o tratamento dispensado aos irmãos era brutal. No momento do resgate, ao serem questionados se tinham se alimentado naquele dia, as vítimas responderam que haviam comido arroz com soro de leite.

Odete da Silva e sua filha Vera Lúcia entraram por diversas vezes em contradição quanto ao tempo em que os irmãos moraram na fazenda, valores recebidos e se os documentos pessoais de ambos estavam ou não em posse da família. Elas também rechaçaram todas as acusações de maus tratos e condições degradantes de trabalho que lhe foram imputadas e afirmaram que tinham com os irmãos uma relação de natureza familiar.

Na ação, o MPT contestou todas as alegações e salientou que a relação abusiva mantida era patronal. Questionado se a criação de leis mais duras poderia desencorajar que proprietários de terras explorassem pessoas vulneráveis, o procurador foi taxativo: antes da possibilidade da proposição de novas penas, ideal seria a aplicação das que já existem de forma efetiva.

“Sobre a questão das leis mais duras, penso que antes de endurecer as penas, precisamos que as penas que já estão previstas sejam realmente aplicadas, o que, infelizmente, não é o caso. Antes de endurecer pena, precisa garantir, dar os meios necessários, aperfeiçoamentos de processo penal e investigação penal necessários para estabelecer a efetiva condenação e cumprimento da pena, que já está prevista”, apontou.

Em maio de 2000, Marinalva passou a receber o Benefício de Prestação Continuada, cujo cartão e senha ficavam sob a guarda dos exploradores. O valor era administrado pelo grupo familiar, sendo sonegado à Marinalva. As normas trabalhistas eram sistemática e generalizadamente desrespeitadas nas relações de trabalho na Fazenda Canoeiro.

Os irmãos moravam em uma casa em péssimas condições de higiene, não recebiam roupas de corpo ou de cama, Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), folga ou salário.

Nos depoimentos prestados ao MPT, Maurozã afirmou trabalhar todos os dias da semana, inclusive aos domingos. Como não havia banheiro no local em que ficavam alojados e não recebiam qualquer produto de higiene, era necessário ir “até o mato” para realizar as necessidades fisiológicas. 

“Foi desrespeitado todo direito do trabalho. Essas pessoas estavam na fazenda desde muito jovens, as circunstâncias que eles foram parar lá são incertas, porque elas têm dificuldade de narrar isso, há ali uma questão, pelo menos no momento que elas foram entrevistadas, elas estavam com pensamento muito confuso. Era muito difícil entender como foram parar lá, e elas mesmas não tinham respostas. Os próprios réus não sabiam precisar o ano, mas provavelmente foram para lá muito jovens com o pai. Ele acabou falecendo e elas vieram a ser criadas lá, em um regime muito brutal de abusos psicológicos e físicos, com privação de comida e condições muito indignas de moradia desde cedo”, apontou.

Indenização

Em 2021, com base nas provas reunidas em inquérito policial e por servidores do Cras, o MPT ouviu os irmãos e os assistentes sociais envolvidos no resgate e ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) para pedir a condenação dos réus ao pagamento de indenizações por danos morais coletivos, danos materiais e danos morais individuais sofridos pelas vítimas, e para o cumprimento de obrigações, como o reconhecimento do vínculo de emprego rural de Maurozã e Marinalva (de 1998 a 2020) e de Rafael da Silva (de 2010 a 2020); a anotação da CTPS; e o pagamento de todas as verbas devidas.

O MPT também requereu o pagamento de indenização por danos materiais a Marinalva, em valor correspondente a todos os seus Benefícios de Prestação Continuada sacados e apropriados indevidamente de maio de 2000 a novembro de 2020.
 
Após anos de tramitação na Justiça do Trabalho, as partes envolvidas chegaram a um acordo. A conciliação foi homologada em audiência realizada no dia 23 de outubro de 2023, na Vara do Trabalho de Barra do Garças.

“Olha, dificilmente, mesmo que houvesse uma condenação em procedência integral dos pedidos, a privação que essas pessoas passaram, esses anos não serão devolvidos. Essa é a questão da indenização: ela tenta dar uma compensação, uma mitigação nesse sofrimento que, no fim, é inestimável, impagável. As sequelas serão para o resto da vida”, disse Torquato.

“Não seria equivocado dizer que a vida dessas pessoas foi severamente condicionada e limitada por essa experiência traumatizante por tantos anos. Mesmo se houvesse procedência integral dos pedidos, não haveria uma reparação total. Nada devolve esses anos. Mas como eu havia dito, os réus não têm patrimônio tão expressivo, então não foi o acordo ideal, mas o acordo possível”, completou.

Erradicação do trabalho escravo

De acordo com dados colhidos pelo Governo Federal, o Ministério do Trabalho e Emprego, por meio da Fiscalização do Trabalho, resgatou, de janeiro a 14 de junho de 2023, um total de 1.443 trabalhadores do trabalho análogo à escravidão no Brasil. Desde o início do ano, foram fiscalizados 174 estabelecimentos, possibilitando que R$ 6.915.358,66 em verbas salarias e rescisórias fossem pagas aos trabalhadores resgatados.

Dados divulgados pelo Ministério Público do Trabalho em fevereiro deste ano mostraram que 33 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão em Mato Grosso em 2022, em operações conduzidas pelos grupos móveis de fiscalização. Entre 2019 e 2021, foram 49 resgatados no estado.

Para o procurador, Mato Grosso ainda está longe da erradicação do trabalho escravo, uma vez que o estado se encontra em fase de subnotificação dos casos devido às limitações estruturais de fiscalização.

O déficit de auditores fiscais do trabalho, categoria que está há mais de 10 anos sem concurso público para provimento de vagas, é apontado por Torquato como um dos principais motivos que impede a eliminação desse tipo de exploração em MT, o que causou impacto nos diagnósticos dos problemas e, consequentemente, nas respostas às ações.

“Pois os auditores, no caso de trabalho, embora sejam apenas uma parte desta engrenagem, é a parte principal que coordena todas as demais em relação à repressão. Então aqui em MT, o que precisamos de primeiro momento é repor essas vagas de auditores fiscais do trabalho que estão vagas. É uma providência imediata e urgente, que terá mais efeitos práticos imediatos”, explicou.

Com relação aos CRAS, MPT, Scorsafava lembrou que há atuação conjunta com integração de esforços entre essas partes, no tocante à repressão com assistência às vítimas. Explicou que o foco sempre foi a repressão para o combate da exploração. No entanto, apenas reprimir não basta, uma vez que as vítimas necessitam de atenção, assistência e prevenção.
Entre em nossa comunidade do WhatsApp e receba notícias em tempo real, clique aqui

Assine nossa conta no YouTube, clique aqui

Comentários no Facebook

Sitevip Internet