O juiz de Direito Guilherme Stamillo Santarelli Zuliani, da 9ª vara Cível de SP, negou o pedido do cantor e compositor João Gilberto para apreender exemplares do livro "João Gilberto". Ele alega que a obra apresenta conteúdo ofensivo à sua imagem e intimidade, pela exposição não autorizada do seu retrato pessoal.
De acordo com o processo, o livro foi criado no intuito de unificar tudo o que publicamente já se escreveu de importante sobre o artista, além de apresentar uma seleção de entrevistas e reunir depoimentos de pessoas, músicos, parceiros, jornalistas e outros.
Segundo o juiz Zuliani, "a biografia é uma obra de informação e, como tal, deverá ser admitida, ainda que sem consentimento do biografado".
Consta ainda na decisão que "a insurgência do autor quanto a imputação de 'neurótico' não alcança o peso que anima paralisar a produção, porque, nesse setor, o vocábulo não ganha o sentido de doença mental, mas, sim, de excentricidade de músicos e artistas ('esquisitices'), o que não é depreciativo".
Processo: 583.00.2012.181186-8
Veja a íntegra da decisão.
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Processo nº
583.00.2012.181186-8
Vistos.
O músico JOÃO GILBERTO PEREIRA DE OLIVEIRA ajuizou ação cautelar preparatória contra COSAC & NAIFY EDIÇÕES LTDA, objetivando apreender exemplares do livro “João Gilberto”, sob a alegação de que a obra, organizada por Walter Garcia, apresenta conteúdo ofensivo à imagem e intimidade, por meio de exposição não autorizada do retrato pessoal do autor.
Decido.
Em casos de colisão entre direitos fundamentais igualmente importantes, o magistrado não deve antecipar o juízo de ponderação para definir o valor constitucional preponderante, antes de ouvir o réu, salvo quando houver verossimilhança das alegações e urgência.
O autor pretende impedir a circulação do livro organizado por Walter Garcia, professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, sob coordenação dos editores Milton Ohata e Augusto Massi, criado no intuito de unificar de tudo o que publicamente já se escreveu de importante sobre o artista e que estava fora de circulação, além de apresentar uma seleção de entrevistas concedidas pelo cantor e reunir depoimentos de pessoas, músicos, parceiros, jornalistas e outros.
Segundo ADRIANO DE CUPIS (OS DIREITOS DE PERSONALIDADE, tradução de Adriano Vera Jardim e Antonio Miguel Caeiro, Livraria Morais, Lisboa, 1961, p. 146): "As pessoas de certa notoriedade, assim como não podem opor-se à difusão da própria imagem, igualmente não podem opor-se à divulgação dos acontecimentos de sua vida. O interesse público sobreleva, nesses casos, o interesse privado; o povo, assim como tem interesse em conhecer a imagem dos homens célebres, também aspira conhecer o curso e os passos de sua vida, as suas acções e as suas conquistas; e, de facto, só através de tal conhecimento pode formar-se um juízo sobre o seu valor. Mesmo nestes casos, por outro lado, as exigências do público detêm-se perante a esfera íntima, e, além disso, as mesmas exigências são satisfeitas pelo modo menos prejudicial para o interesse individual. Será, portanto, lícita a biografia, mas ilícita a narrativa romanceada ou dramatizada, que não é necessária para a exposição dos factos pessoais".
Portanto, a biografia é uma obra de informação e, como tal, deverá ser admitida, ainda que sem consentimento do biografado. Somente será ilícito o conteúdo e aí, sim, caberá intervenção judicial preventiva (interdital) ou de reparadora.
O direito deduzido (ofensa a direito de personalidade) é forte, mas não verossímil. Há controvérsia sobre os limites da restrição do titular do direito sobre obras biográficas não autorizadas, podendo ser citado, para contrapor ao que se diz na inicial, o que está escrito na note 860, de fls. 342, do livro de CAPELO DE SOUSA (O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995): "Também são lícitos os resumos biográficos e as próprias biografias de pessoas da história contemporânea, feitos a partir de documentos de acesso público, de declarações públicas do biografado e das pessoas que com ele privaram ou contraditaram, de factos ocorridos publicamente e mesmo de acontecimentos e de circunstâncias privadas".
Sem prejuízo do resultado final da ação direta de inconstitucionalidade nº 4815, também cabe mencionar a posição de ANDERSON SCHREIBER (Direitos da Personalidade, Atlas, 2011, p. 142) ao comentar o controvertido art. 20, do CC, diante da polêmica sobre biografias não autorizadas (o caso do cantor Roberto Carlos): "Embora o art. 20 exija, em regra, a autorização da pessoa para a divulgação da sua imagem, da sua voz e de seus escritos, o próprio dispositivo reconhece que há exceções, às quais os tribunais acrescentam outras tantas, especialmente no exercício das liberdades constitucionais de informação e de expressão artística ou intelectual. Em outras palavras: basta interpretar o art. 20 à luz da Constituição para perceber que a ausência de autorização não impede juridicamente a edição de biografias, do mesmo modo que não impede a circulação de jornais. A melhor jurisprudência já caminha nesse sentido, limitando-se a impedir a circulação naquelas hipóteses em que verificada efetiva violação à privacidade, à imagem ou à honra do biografado".
No intróito da lide, não há como reconhecer como provado, inequivocadamente, lesão à honra, à imagem ou a intimidade do autor, o que desautoriza a tutela antecipada, notadamente inaudita altera parte. É preciso respeitar o dispositivo que obriga constituir o contraditório (art. 5º, LV, da CF) para decidir sobre a oportunidade de impedir a distribuição do livro e, sem pretender avançar sobre os fatos que serão melhor definidos quando da eventual resposta, a insurgência do autor quanto a imputação de "neurótico", não alcança o peso que anima paralisar a produção, porque, nesse setor, o vocábulo não ganha o sentido de doença mental, mas, sim, de excentricidade de músicos e artistas (“esquisitices”), o que não é depreciativo, data venia. O episódio, para ficar em apenas um dos detalhes da causa petendi, não é suficiente para justificar o veto do acesso do público, como se fosse causa de uma censura.
Do exposto, indefiro a tutela antecipada.
Cite-se o requerido, com urgência, para que apresente contestação no prazo de cinco dias, contados do dia seguinte à data da juntada do mandado de citação aos autos, por meio de advogado, sob pena de serem presumidos como verdadeiros os fatos articulados na petição inicial (CPC, arts. 285e 319).
Servirá a cópia do presente como mandado, ficando o oficial de justiça desde já autorizado a diligenciar nos termos do art. 172, § 2º, do Código de Processo Civil.
Cumpra-se na forma e sob as penas da lei.
Int.