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Segunda-feira, 29 de abril de 2024

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Reflexões sobre a Instituição Obrigatória aos Municípios de Taxa de Serviços de Coleta/Remoção de Lixo do Marco Regulatório do Saneamento Básico

Este artigo reflete sobre a possibilidade jurídica da União impor aos Municípios a instituição de taxa de remoção/coleta de lixo (resíduos sólidos), mediante lei ordinária, como previsto na Lei de Diretrizes Básicas do Saneamento Básico (Lei Ordinária Federal n. 11.445/2007), alterada pela Lei Ordinária Federal n. 14.026/2020 que definiu o seu marco regulatório. Ao que se vê, há uma ingerência indevida na autonomia tributária e política dos Municípios. Por isso, busca-se reflexão quanto a tal ingerência, deixando para outro momento quais serviços de limpeza pública são passíveis de taxação.

Os artigos 29, inciso III, 30, e 35 da Lei n. 11.445/2007, com redação dada pela Lei n. 14.026/2020, determinaram aos Municípios a instituição de taxa ou tarifa para o custeio do serviço público de coleta (remoção) e tratamento de resíduos sólidos. Detalhe, estabelece que os Municípios devem instituir tal exação no prazo 12 (doze) meses a contar da publicação da Lei Federal n. 14.026/2020, sob pena de ser considerada renúncia de receita, nos termos do art. 14, da Lei Complementar n. 101/2001 (Lei de Responsabilidade Fiscal). Ou seja, em tese, os gestores municipais podem ser responsabilizados caso não realizem os procedimentos autorizadores de renúncia de receita ou não instituírem a exação.

Entretanto, conforme a Constituição Federal, no artigo 145, II, a instituição de taxas de serviço é de competência legislativa de cada ente federativo (Município, Estado, Distrito Federal e União) que o forneça de forma divisível e específica (artigos 77, 79 e 80 do Código Tributário Nacional – recepcionada como Lei Complementar). Isso é, a União não pode instituir taxa de serviço público que por ela não é prestado, pois é competência do ente que é o prestador do referido serviço (exemplo: a União não pode instituir taxa de serviços funerários, os quais são prestados por vários municípios). Ainda, nem pode estipular definições gerais de fatos geradores, bases de cálculo, ou até formas de apuração, salvo em alguns casos por Lei Complementar, o que demanda tramite e quórum específicos diversos da lei ordinária (artigo 146, III, da CF/1988).

Assim, a lei ordinária, ao impor uma sanção (indireta) ao Municípios ou seus gestores em face da regularidade fiscal, por não instituição de tributo específico que não está previsto na Constituição Federal, indica um avanço indevido na autonomia e competência tributária dos Municípios por parte da União. Ou seja, não pode um ente federativo interferir no regime tributário de outros entes, nem instituir penalidades por sua não instituição de tributos (não previstos especificamente na constituição), se não tem competência tributária ou legislativa para tanto. Considerando que a competência e autonomia tributária dos Municípios faz parte de seu patrimônio político federativo, essa ingerência pela União chega a ser uma afronta ao próprio Pacto Federativo (art. 60, §4º, I, da CF/1988).

O artigo 11, da Lei de Responsabilidade Fiscal, estabelece que a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação são essenciais à responsabilidade fiscal. Contudo, a competência tributária constitucional é definida pela Constituição e regulada por Lei Complementar, não podendo ser definida ou limitada por Lei Ordinária.

Claro que, no exercício de sua autonomia financeira e competência tributária, estabelecida na Constituição Federal (art. 145, II), salutarmente, a taxa pelos serviços de coleta, remoção e tratamento de resíduos sólidos (ex.: lixo domiciliar) pode ser instituída pelos Municípios. Entretanto, os serviços devem ser efetivamente realizados e quantificados de forma específica e divisível ao tomador específico do serviço (contribuinte), como forma de transferência de custos aos geradores dos mesmos, sem que inclua o custeio de outros serviços públicos (ex.: limpeza de vias e logradouros públicos. Esse é um entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal, a exemplo do julgamento do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n. 555.225/SP. De qualquer forma, a União não pode impor a sua instituição e penalização por lei ordinária.

Dessa forma, é indevida e inconstitucional a ingerência na autonomia financeira e competência tributária dos Municípios, pela Lei Ordinária Federal n. 11.445/2007,  alterada Lei Ordinária Federal n. 14.026/2020, bem como é indevida a penalização dos Municípios e gestores pela não instituição de taxa de serviços público de coleta/remoção de lixo.


Gustavo Vettorato é advogado tributarista em Cuiabá e Goiânia, doutorando em Direito Constitucional (IDP), mestre em Direito Constitucional e Sociedade (IDP), especialista em Direito Tributário (IBET e UNIRONDON) e Direito Constitucional (IDP), bacharel em Direito (UNISINOS), professor substituto de Direito Tributário e Direito Internacional da Universidade Estadual de Goiás, membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/GO, ex-professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade Federal de Mato Grosso, ex-conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda, ex-assessor de assuntos especiais da Secretaria de Estado de Fazenda de Mato Grosso. Autor do livro Transparência Tributária, Custos De Transação Tributários e Eficiência Arrecadatória e artigos jurídicos.
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