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“Decreto concedeu à população migalhas”, diz advogado sobre flexibilização da posse de arma de fogo

Da Redação - Vinicius Mendes

No último dia 15 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que facilitou a posse de armas de fogo à população brasileira. O direito à posse permite que o cidadão tenha uma arma de fogo em casa ou no local de trabalho. Ele já existia, mas agora foi flexibilizado. O advogado e professor de Direito Penal e Processo Penal, Giovani Santin, afirmou que o decreto deu “migalhas” à população, já que a posse sem o registro continua sendo crime.
 
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Para ter direito à posse em sua residência ou no local de trabalho o cidadão deve cumprir uma série de requisitos. Para conseguir autorização é preciso ter conhecimento das técnicas para uso e manuseio de arma de fogo, apresentar os documentos pessoais, um laudo psicológico emitido por um psicólogo credenciado pela Polícia Federal e, por fim, fazer o teste com um instrutor credenciado pela PF.
 
O advogado criminalista Giovane Santin é especialista e mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS. Além de advogar ele também é professor na Universidade Federal de Mato Grosso, na disciplina de Direito Penal e Processo Penal. Após assinatura do decreto ele escreveu o artigo “A flexibilização dos requisitos à concessão de posse de arma de fogo como causa supralegal de exclusão da culpabilidade: o autorreconhecimento da insegurança pública a legitimar a inexigibilidade de conduta diversa”
 
Santin afirma que os efeitos deste decreto só poderão ser sentidos após algum tempo. Porém, com a experiência que tem nesta área, acredita que pouco deve mudar e que a assinatura do decreto foi uma jogada política. Ele conversou com o Olhar Jurídico sobre o assunto, fazendo apontamentos sobre os efeitos que esta flexibilização da posse de arma pode causar na sociedade.
 
Leia a entrevista na íntegra:
 
Olhar Jurídico - Na realidade o cidadão já possuía o direito à posse de armas antes deste decreto certo? Como funcionava?
 
Giovane Santin - Eram bem rígidos os critérios e havia uma subjetividade para o Estado autorizar. Parece que agora trazem alguns requisitos mais flexíveis, principalmente para moradores que estão em áreas rurais ou tem estabelecimento comercial. Para essas pessoas, parece que esse decreto vai dar uma maior amplitude e possibilidade para que ela possa efetivamente ter essa posse.  
 
Olhar Jurídico - O que é permitido, no caso, é a posse e não o porte correto?
 
Giovane Santin - Exato. Precisa ficar caracterizado o seguinte:  é necessário manter em casa ou outro estabelecimento. Não pode ficar perambulando, andando com a arma. Isso não está autorizado. Na prática, eu acho que o decreto concedeu a população migalhas. Não me parece que vai ter tanto efeito prático. Parece que foi apenas para cumprir uma promessa política, essa é a impressão que tenho.
 
Olhar Jurídico - Vimos que com o decreto houve muita desinformação. Boa parte da população, aparentemente não sabia a diferença entre posse e porte...
 
Giovane Santin - A população não conhecia a diferença e nem sabia dos requisitos que eram ensejadores para que ela pudesse ter a posse. Existe uma grande diferença aí. Não se concedeu um salvo conduto para a concessão de posse de armas.
 
Olhar Jurídico - O senhor imagina que vai haver um aumento de circulação de armas de fogo?
 
Giovane Santin - De circulação, não. Porque o Decreto autoriza a circulação, mas tão somente retira o poder discricionário da Polícia Federal para decidir quem pode ou não ter acesso ao armamento. A questão quanto ao porte continua a mesma coisa. 
 
Olhar Jurídico - Antigamente, quem geralmente tinha a posse?
 
Giovane Santin - São as pessoas idôneas que tinham capacidade técnica para ter a posse, uma vez que eram submetidas a testes, inclusive psicológicos, para estar devidamente habilitada e ter essa autorização. Eram critérios muito subjetivos. Com o Decreto sem ampliam as possibilidades, principalmente nos locais que apresentam índices anuais de mais de 10 homicídios a cada 100 mil habitantes. E, no caso, não existe estado brasileiro que tenha índice inferior a este. 
 
Olhar Jurídico - Quais serão as consequências, que o senhor acredita, deste decreto?
 
Giovane Santin - Penso nas consequências jurídicas desse decreto. Antes era proibido ter posse de arma sem a devida autorização. Existem várias pessoas que respondem processos criminais por posse de arma ou munição e que o Poder Judiciário, diante desse decreto, vai ter que dar uma resposta. Foi nesse sentido que escrevemos o artigo.

Se eu moro em um estado, cujo o índice é superior a 10 homicídios a cada 100 mil habitantes, implicitamente, a minha conduta de não ter a posse ela é inexigível. Aquelas pessoas que respondem processos criminais em razão da posse sem a devida autorização, após o decreto, poderão alegar uma excludente de culpabilidade e, consequentemente, ser absolvido. 

 
Olhar Jurídico - Qualquer pessoa pode ter a posse no local de trabalho?
 
Giovane Santin - A posse é permitida nos locais definidos no Decreto. Cito o trecho que diz que “dentre as hipóteses que é presumida necessidade de posse de arma de fogo, para a própria proteção ou de sua propriedade, sobressai aqueles moradores de áreas rurais, dos proprietários ou responsáveis legais de estabelecimentos comerciais ou industriais, além dos residentes em áreas urbanas com elevados índices de violência.” 

O Decreto utiliza o termo “elevado índice de violência com 10 homicídios a cada 100 mil habitantes”. Parece que há aqui uma autorização para a posse, mas eu repito: é migalha perto do que foi divulgado na campanha política e penso que as pessoas não se deram conta disso. Pensam que estão autorizadas a portarem a arma e não é isso. Pode ter a posse? Pode, desde que autorizado. 
 
Olhar Jurídico - Uma das grandes críticas de quem é contra, é que com isso os índices de violência aumentariam. O senhor concorda?
 
Giovane Santin - Esse é um estudo bem antigo e o tema é discutido desde o Estatuto do Desarmamento. Muitos estudiosos eram contra em razão da facilidade que  alguém poderia portar uma arma e consequentemente utilizá-la.

Não tenho uma opinião pronta sobre o assunto e seria muito ingênuo da minha parte dizer que vai aumentar o índice de crimes e homicídios em razão da autorização para a posse sem um estudo mais aprofundado. Penso que vamos ter que esperar para ver qual vai ser a consequência jurídica. Com certeza haverá um aumento do registro de armas para a posse. 
 
Olhar Jurídico - Como funciona a questão da legítima defesa, caso alguém invada uma residência, por exemplo, ameace uma família, e a pessoa utilize a arma de fogo?
 
Giovane Santin - A legítima defesa, independente da autorização para a posse, sempre foi uma excludente do crime. O que é a legítima defesa? Nada mais é do que a reação a uma agressão injusta, utilizando-se dos meios necessários, que estão à disposição, de forma moderada.

Então, por exemplo, entra uma pessoa na minha casa, eu tenho a posse com o devido registro, e ainda que não a tenha registrado, a lei autoriza que eu me defenda daquela agressão injusta utilizando o meio necessário. O que se entende por meio necessário? Vamos supor que eu tenho uma arma de fogo, então este é o meio necessário que tenho à minha disposição para utilizar de forma moderada e suficiente para repelir uma agressão injusta.
 
Olhar Jurídico - O que seria “forma moderada” nesta situação?
 
Giovane Santin - Por exemplo, houve um disparo de arma  para cima e o meu agressor saiu correndo, a agressão foi repelida. Porém, se saio perseguindo e continuo atirando para atingir o agressor, consequentemente ultrapassei os limites da legítima defesa.

Por outro lado, a lei não exige que eu assine a cartilha dos covardes, ela autoriza que eu me defenda e se eu dou um tiro e infelizmente atinge um órgão vital, este foi o meio necessário e moderado. Então estes critérios da legítima defesa são objetivos, mas depende muito de cada caso concreto.
 
Olhar Jurídico - A agressão tem que ser clara para configurar legítima defesa? Por exemplo, se alguém invadir sua casa, sem intenção de roubar, e no susto você atirou na pessoa, é legitima defesa?
 
Giovane Santin - Vamos supor que estou na minha casa e uma pessoa tentar invadir mediante escalada de um muro para subtrair uma fruta do pomar. Nesse caso, não é razoável disparar a arma contra essa pessoa para impedir que subtraia uma fruta, uma vez que um grito seria o suficiente para repelir essa conduta.

Agora se entra alguém na minha casa, escalando o muro, no período noturno, isto é suficiente para entender que me encontro numa situação de agressão injusta atual ou iminente que permite a minha reação.
 
Olhar Jurídico - Um outro exemplo, e se fosse um garoto que subisse no muro para pegar uma manga, mas você não sabia e acabou atirando no menino, como seria tratado este caso?
 
Giovane Santin - Aí me parece que não caracteriza legítima defesa. O direito não é matemática,  mas um produto cultural da humanidade, então não tenho uma resposta  pronta para todos os casos que se apresenta. Interpretamos os fatos e posteriormente apresentamos uma tese jurídica. 

Pode, diante desta circunstância, caracterizar uma legítima defesa? Pode, imagine uma pessoa que já foi roubada várias vezes e violentada em razão das agressões decorrentes de roubo, e se depara com alguém pulando o muro novamente, ou seja, ela tem indícios suficientes para acreditar que vai ser novamente agredida e neste momento repele aquela agressão. Imagine alguém que está em um estabelecimento trabalhando, já foi várias vezes roubado e agredido, e alguém se aproxima ali com suspeitas de que vai agredi-lo novamente, entendo legítimo uma reação.
 
Olhar Jurídico - E nos casos de acidentes com armas?
 
Giovane Santin - O decreto traz uma questão referente a locais onde se encontram crianças, tomaram este cuidado de determinar como é que deve ser a posse de armas em locais onde tem crianças ou idosos para evitar estes acidentes.
 
Olhar Jurídico - E se não forem crianças? Um acidente entre amigos, adultos, com a arma de fogo de alguém que tem a posse?
 
Giovane Santin - Como você mesmo diz foi um acidente, no entanto, há uma banalização da interpretação para caracterizar crimes culposos e, ao contrário do que as pessoas divulgam por aí e na condição de professor me entristece muito a simplicidade, inclusive de muitos operadores do direito como interpretam as condutas culposas, uma vez que o crime culposo tem uma estrutura extremamente complexa e de difícil caracterização. 

Em uma brincadeira a arma pode ter disparado e haver um acidente, e quando se trata de acidente eu não entendo que deve ter uma intervenção do direito penal. Imagine alguém que está mostrando a arma para um irmão ou amigo e por acidente acaba o matando. A pena dele já está decretada, uma vez que deverá conviver com o fato e a culpa em sua memória enternamente .
 
Olhar Jurídico - Um dos problemas deste decreto é que ele considera a declaração unilateral do cidadão dizendo que tem a necessidade de ter uma arma, sendo que antes isso era avaliado pela autoridade. Concorda?
 
Giovane Santin - Correto. O decreto inclusive diz que presume-se como verdadeiras as declarações prestadas pelo cidadão. Imagina autorizar a posse de uma arma para quem não tem a mínima condição de manuseá-la só porque ele declarou ter condições para tanto? Não concordo com essa declaração unilateral ser presumida como verdadeira. 
 
Olhar Jurídico - O senhor então acredita mesmo que este decreto foi uma jogada política?
 
Giovane Santin - Esta foi uma promessa de campanha e de interesse político que tem que envolver uma discussão muito mais profunda. Merece uma discussão mais complexa por se tratar de um fenômeno social complexo e não existe resposta simples para isso. Então,  autorizar de repente e presumir como verdadeiras as declarações de qualquer cidadão, no sentido de que ele tenha condições de manusear a posse de uma arma, me parece extremamente sensível, delicado. Se vai aumentar o número de homicídios, se vai reduzir o número de roubos ou estupros, se vai aumentar o índice de armas legalizadas circulando pelo país, nós vamos ter que aguardar para ver esta reposta.
 
Olhar Jurídico - Acredita que trará redução na criminalidade?
 
Giovane Santin - Seria ingenuidade minha afirmar que isto vai gerar redução da criminalidade, por exemplo, porque as pessoas tem consciência de que alguém vai ter a arma dentro de sua casa. É muito rasa esta afirmação e a questão envolve outros fenômenos muito mais complexos que englobam fatores políticos, sociais e econômicos. Então este decreto, para mim, foi uma migalha concedida à população pelas expectativas criadas e foi uma promessa política de interesse de políticos. Não se entregou o que foi esperado, uma vez que a ideia de que as pessoas poderiam andar armadas continuam não podendo.
 
Olhar Jurídico - O senhor citou a possibilidade da excludente de culpabilidade. Como isso funciona? Quem responde na Justiça por posse ilegal pode ter o processo abolido?
 
Giovane Santin - Não. Abolitio criminis ocorre quando uma lei que prevê determinada conduta como crime, como é por exemplo, portar arma, é revogada por outra lei que torna aquela conduta proibida e definida como crime como permitida, então o abolitio criminis vai abolir aquele comportamento que era considerado como crime. Não dá para dizer que ocorreu isso com o Decreto, ou seja, não está permitida a posse de armas e munições, é necessário que haja o registro. Não ter o registro e ter a posse é crime.

 No entanto quando eles abrem o conceito, que é aberto, da possibilidade de posse de armas em locais com elevados índices de violência, ou seja, mais de 10 homicídios para cada 100 mil habitantes, me parece que se trata de uma circunstância que exclui a culpabilidade do agente, ou seja, exclui o crime, mas isso tem que ser apurado e analisado no processo. 

Olhar Jurídico - Como o senhor acredita que vai ser a postura dos magistrados com relação a isso, nos processos?
 
Giovane Santin - Quando se trata de crime não acredito que os operadores do direito vejam com bons olhos a posse sem autorização em razão de o agente acreditar estar em situação de risco. Analisando tão somente o critério prático, penso que continuarão existindo condenações daqueles que forem acusados pelo crime de posse de arma ou munição sem o devido registro.
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