Perspicácia, coragem e um bom faro para a polêmica podem não ser bons ingredientes para muitos advogados em início de carreira. Certamente não é o caso de Ércio Quaresma Firpe, que nasceu para os palcos do julgamento popular. As declarações, as provocações e a ousadia, entretanto, são calculadas. Com 27 anos de experiência, hoje sabe que “Tribunal de Júri não é lugar de aventureiro”. Ao contrário de outras áreas da advocacia, onde a coleção de vitórias define a qualidade do profissional, o atuante em Júris Populares dá de ombros a este fator.
Quaresma coleciona inúmeras vitórias, mas também muitas derrotas. Nada anormal, afinal de contas, defende clientes que para a opinião pública, a imprensa e a promotoria, já se sentam no banco dos réus na qualidade de condenados, tal como seu mais ilustre ex-cliente, Bruno Fernandes das Dores de Souza, o goleiro Bruno, condenado a prisão pelo assassinato de sua ex-namorada Eliza Samudio.
O advogado se queixa, "a imprensa condenou um homem inocente". Em uma sociedade televisionada como a nossa, apresentadores “são formadores de opinião e produzem vereditos antes da culpa ser formada”, reclama. Seu problema com a imprensa, entretanto, vem de longa data. É desafeto da
Revista Veja, apontado pelo carro chefe da Editora Abril como “controverso” e “polêmico”. Quaresma dá de ombros e contropõe. “Todo cidadão que não se curva ao sistema se torna controverso”.
Abaixo, você confere a primeira parte do diálogo travado por
Olhar Jurídico com Ércio Quaresma Firpe, advogado criminalista e palestrante, que para além do caso Bruno, atuou nos polêmicos processos do assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang e do Massacre dos Sem-Terras em Eldorado dos Carajás.
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A Revista Veja lhe rotula como “controverso” e “polêmico”. Por qual razão?
“A Veja não gosta de mim. Não sei, aliás, se eles gostam menos do Lula do que de mim (sic). Eu tenho posicionamento forte, se estou certo vou até o inferno defendendo minha posição. Eles pegam no meu pé por conta de um problema pessoal com entorpecentes que tive e que já superei, uma dependência química de 07 anos. Enfim, eles criam uma posição que se torna uma verdade absoluta. Todo cidadão que não se curva ao sistema se torna controverso. Tenho outro defeito gravíssimo, tenho OAB. Em cliente meu ninguém monta, não permito. Meu direito é meu e ninguém toca, da mesma forma o direito de meu cliente. Sempre falo nas palestras que ministro: ‘o advogado é o anteparo entre o Estado todo poderoso e o indivíduo’.
Que lição o senhor tira do caso “Goleiro Bruno X Eliza Samúdio”?
“Eu cometi vários erros pessoais, me preparei a vida inteira por aquele processo e errei. Erros estes – repito – pessoais e não processuais. O caso Bruno foi o que me deu maior notoriedade, mas não foi o caso de maior repercussão que já trabalhei. Veja que no caso do Massacre de Eldorado e Carajás morreram 19 pessoas, participei da absolvição de 06 policiais. O caso da missionária norte-americana Dorothy Stang virou documentário que rodou o mundo no cinema e na Discovery Channel. O caso Bruno foi mais um daqueles que eu trabalhei. Aí as pessoas perguntam: ‘ah, então você gosta de polêmica?’. Não, o cidadão me contrata, eu vou falar o quê? Não porque o caso é midiático?”.
Qual a influência da imprensa nestes casos?
“Ah, a influência da mídia é brutal dentro do processo penal, notadamente nos crimes dolosos contra a vida, quando há Júri. Percebo um ‘Datenismo’ (em referência ao apresentador da TV Bandeirantes, Datena), um ‘Marcelismo’ (Marcelo Resende, da TV Record), um ‘Sonismo’ (Sônia Abraão, da Rede TV). Eles são formadores de opinião e produzem vereditos antes da culpa ser formada”.
Essas opiniões chegam ao ponto de afetar o juízo?
“Incomensuravelmente, é uma coisa desproporcional. Veja o caso do ex-motoboy Lindemberg Alves (que assassinou em 2009, em Santo André – SP, a ex-namorada Eloá Pimentel), a juíza (Milena Dias, da Vara Criminal de Santo André-SP), aplicou a pena de 98 anos e 10 meses de reclusão alegando que se devia acabar com o ‘fetichismo da pena mínima’. (sentença de 16 de fevereiro de 2012, que diz:
"A sociedade, atualmente, espera que o juiz se liberte do fetichismo da pena mínima"). Eu falo muito nas palestras, ‘gente, vamos deixar os fetiches lá no campo do 'rala e rola’ (risos). Não há fetiche, o que houve foi influência midiática brutal, ao ponto de haver uma entrevista durante o crime, no fluir da ação incriminada, ele conversou ao vivo com Datena e com a Sônia Abraão (para você ver à que nível chegou nossa imprensa!). O reflexo disso incide sobre o judiciário”.
É grande então a diferença entre processos com apelo midiático e processos de anônimos?
“Monumental, imagine um conselho de sentença que já teve contato com as provas (do ato criminoso) por meio da mídia. Pois, em casos não midiáticos, a prova é conhecida pelos jurados através das partes, ou seja Ministério Público (com a pretensão condenatória) e os advogados de defesa (com as teses pelo afastamento da qualificadora, absolvição ou negativa de autoria do crime). Cito um exemplo altamente desagradável: o ex-apresentador da edição brasiliense do "Balanço geral", da Record, Marcão do Povo, que se referiu à cantora Ludmilla como "macaca”. Esse cidadão foi absurdamente execrado, por conta da asneira que fez. ‘Ah, mas eu não quis ser racista’, alegou. Ora, é uma situação delicada, em que ele alega ter sido crucificado sem direito de defesa. Momento seguinte, estava vendo TV em casa e no SBT estava lá o Marcão do Povo bradando: ‘ah, olha, o delegado falou que o cara é aquele lá mesmo, é ele mesmo!’. Quer dizer, a criatura se diz injustiçada, pois não teve direito de defesa e agora que recebe seu dinheiro do Silvio Santos, na SBT, 'desce a ripa' (critica os denunciados) e forma opinião. Crime doloso contra a vida quem julga é a sociedade, é o conselho de sentença, como fica se você já chega lá com a coisa (sentença) pré-concebida?”.
“Veja esse outro exemplo...”.
“Assistindo o Fantástico outro dia, estavam falando do caso Virgínia Soares de Souza (médica acusada por ter abreviado a vida de oito pacientes no Hospital Evangélico, em Curitiba), esse caso é sempre presente em minhas palestras. Na reportagem sobre este caso a jornalista diz: ‘Houve uma reviravolta e ela foi absolvida’. Espera, denúncia é uma pretensão deduzida do MP buscando que determinada pessoa seja condenada. Que reviravolta há no fato de que a prova não foi acolhida pelo juízo? Só porque a prova não foi acolhida pelo juízo é reviravolta? Isto é contraditório, devido processo legal e ampla defesa, ora, havia ali um causo contado, e esse caso não foi assimilado pelo juiz, simples. Como você vai dizer que é reviravolta? Então é isso, eles fazem todo um estardalhaço midiático e chegando lá: ‘não há nexo causal entre a ação e o resultado, logo não há crime’, ponto. Naquele caso ainda tem outra questão, que é o fato de não haver prova da existência do crime. Como você mandar alguém a júri só porque a mídia quer? Ninguém quer calar ou inibir a imprensa, os veículos de comunicação são necessários, sagrados e constitucionais, o problema é quando eles formam uma opinião que é alienígena àquilo que é de direito”.
O caso Bruno e o assassinato de Eliza Samudio seria um exemplo disto?
“Ah, ele foi condenado por causa da mídia, não tem dúvida. Não há provas, não há cadáver. O pessoal pergunta: ‘onde está a Eliza?’, e eu falo: ‘o pulso ainda pulsa’. Quero dizer, não há provas de que há morte. ‘Ah, mas o senhor tem provas de que ela está viva?’. Não, mas não há provas de que ela morreu. Dizem que ela foi estrangulada, mas não há vestígios, e que depois ela foi picada e os cachorros comeram, mas não há tártaro da Eliza Samudio nos cães. Aí te pergunto: como ele foi condenado? Eu sempre falo: ‘no dia que você me apresentar Luiz Carlos Samudio, pai dela, eu falo onde está o corpo de Eliza Samudio’. Todos os parentes da vítima apareceram na TV naquela época, o pai também. Depois de um tempo e de uma hora para outra ele desapareceu, pois ele estava com 08 anos de cadeia pelo estupro da filha. Ele sumiu. Está morto? Você pergunta onde está Eliza Samudio e eu pergunto onde está Luiz Carlos Samudio. Por que ele não aparece? ‘Ah, mas são diferentes as situações’. Não, são idênticas, o semblante de Luiz Samudio foi tanto divulgada quanto a de Eliza. Algumas pessoas permanecem ocultas (o que é diferente do foragido) por 20 anos, para prescrever um crime, mesmo aqueles de notoriedade. Por que não pode ter acontecido isso?”.
Houve interesse seu em descobrir a verdade? O goleiro Bruno lhe confidenciou se assassinou Eliza?
“Eu sou um bicho curioso, sou perguntador. Para mim ele sempre negou, nunca assumiu nada. É uma coisa paradoxal, daquilo que foi o mote da deflagração da prisão de todos eles (réus desta ação penal), que foi aniquilado pela prova técnica. Eliza foi levada para casa de um cidadão que é meu amigo e que eu represento hoje, o ex-policial Marcos Aparecido dos Santos (vulgo 'Bola', amigo do goleiro Bruno), lá ela teria sido estrangulada. Volto a dizer: estrangulamento não deixa vestígio, exceto se você produzir cogumelo de espuma, termo usado pela Medicina Legal quando você elimina aquela espuma resultante da obstrução das vias respiratórias. O único vestígio seria esse, ou uma saliva que cai no carpete e então você faz o exame de DNA para comprovar presença de determinada pessoa naquele local (não para confirmar eventual estrangulamento). Depois dizem que ela foi picada e dada de comer aos cachorros. Bem, a Medicina Legal é fundamental para quem atua em Tribunal de Júri. Sobral Pinto (jurista) fala que é advocacia não é lugar de covardes e eu falo que Tribunal de Júri não é lugar de aventureiro. O corpo humano tem 06 litros de sangue. O ‘Bola’ fez o que com aquilo, tomou de canudinho? Veja o contraste com o caso Eliza Matsunaga (condenada em 2016, em São Paulo-SP, a 19 anos e 11 meses de prisão pela morte e esquartejamento do marido, Marcos Matsunaga, diretor da Yoki alimentos, em 19 de maio de 2012). Até a hora que ela pregou um tiro na testa do marido, aquela defesa era extraordinária de ser feita, mas a partir do momento que ela picou o corpo, deu problema. O que foi encontrado no apartamento dela? Sangue. O parlamento chegou a ser limpo, mas o luminol (produto que você tentar jogar até ácido que ele detecta sangue do mesmo jeito), detectou vestígios. No caso de Eliza Samudio, onde estão os 06 litros de sangue do corpo que foi dado para os cachorros comerem? Eles fizeram perícia no local onde era o canil e não há material genético da moça. Assim, a estória (grafia escolhida pelo entrevistado) e não história, pois falo de fábula, não foi ratificada pela prova técnica. Se você não tem prova de que o fato existiu, que crime você tem? ‘Ah, mas há isso e aquilo, confissões, acordos...etc”.
Ou seja, a imprensa condenou um homem inocente?
“Condenou, mas não vou dizer que é por conta da imprensa. A imprensa condenou, pois o MP comprou esta estória, sustentou e ela foi acolhida. O que vejo é que há outros casos em que inocentes foram condenados sem influência midiática, mas aquele é um caso em que a mídia bateu firme“.
A entrevista continua.