Ação da Defensoria Pública de Mato Grosso buscando assegurar o acolhimento digno de pessoas em situação de rua em Cuiabá é fundamentada em uma série de relatórios de inspeção realizados pela própria Defensoria em diversas unidades de acolhimento do município. Os documentos revelam um cenário alarmante de precariedade estrutural, superlotação, falta de recursos humanos e materiais, além de condições que violam a dignidade e colocam em risco a saúde e a segurança das pessoas acolhidas.
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As inspeções foram realizadas entre janeiro e maio de 2025 em diferentes locais: Albergue Municipal do Porto, Casa de Albergue Governamental “Manoel Miraglia”, Unidade de Acolhimento "Estrada da Guia", Associação Terapêutica Ambiental e Acolhimento Paraíso (ATAAP) e o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP).
A Defensoria Pública argumenta na ação que a situação em Cuiabá configura uma "crise humanitária urbana", caracterizada por abandono institucional e omissão do poder público em fornecer respostas adequadas às necessidades básicas da população em situação de rua.
A instituição destaca a insuficiência de vagas nas unidades existentes frente à demanda crescente, forçando centenas de pessoas a permanecerem nas ruas, expostas a riscos e violações. O direito à moradia, à vida digna, ao trabalho e à cidadania são direitos fundamentais que, segundo a Defensoria, estão sendo violados.
Os relatórios de inspeção detalham as condições encontradas em cada unidade:
Albergue Municipal do Porto:
A unidade possui 50 leitos, que estavam com a capacidade completa no dia da inspeção (31/01/2025), não sendo possível admitir mais usuários.
A estrutura física apresenta problemas como teto com mofo, portas e portais quebrados.
Os três banheiros (dois para usuários, um para equipe) estão em más condições de uso, sujos e mofados, com portas e fechaduras danificadas nos banheiros dos usuários.
Não há disponibilização de kits de higiene para os usuários.
Falta um espaço específico para atividades recreativas; o pátio sem cobertura é usado para interação social, mas a piscina no centro do pátio está interditada e sem utilidade.
A área de refeições necessita de reforma no piso e pintura, sendo que o piso quebrado oferece risco à integridade física de uma pessoa com deficiência visual.
Há apenas um bebedouro, enferrujado e sem vazão para água de descarte.
O abastecimento de água não é regular, necessitando frequentemente de caminhão pipa.
Há falta de produtos de limpeza, comprometendo a higiene do local.
Uma sala destinada a atividades institucionais está inutilizada devido a infiltrações evidentes, acúmulo de água, mofo e telhas quebradas, sendo usada como depósito improvisado. Essa condição pode agravar problemas respiratórios.
A sala da psicóloga tem armários danificados e é utilizada para armazenar diversos objetos, prejudicando o atendimento psicológico e a dinâmica institucional.
A equipe multidisciplinar é considerada insuficiente para atender às necessidades dos usuários.
As quatro refeições diárias não são fornecidas com a regularidade necessária, faltam verduras, e houve relatos de acolhidos comendo apenas ovos por uma semana em algumas ocasiões.
Casa de Albergue Governamental “Manoel Miraglia”:
A unidade abriga quatro famílias Warao, totalizando mais de 80 pessoas, incluindo crianças e recém-nascidos, e a infraestrutura não é suficiente para atender à demanda, resultando em superlotação.
Toda a unidade necessita de reforma, com paredes gastas precisando de pintura e pisos e calçamentos internos precisando ser refeitos.
Dos 82 colchões disponíveis, alguns não possuem roupa de cama.
A área de lavanderia está em condições precárias, com piso danificado, paredes sujas e mofadas, falta de manutenção e limpeza, sendo considerada insalubre.
Os quatro banheiros (um em cada quarto) têm higiene geral deficiente.
Não há disponibilização de kits de higiene para os residentes.
Não existe um espaço específico para lazer; o pátio sem cobertura é limitado, desorganizado e repleto de lixo e restos de comida.
A equipe multidisciplinar é insuficiente, composta por apenas uma assistente social e sem psicólogo, comprometendo a qualidade do serviço.
A cozinha, embora funcional, tem presença constante de insetos, como baratas e moscas, o que compromete a higiene.
A alimentação é considerada precária, limitada em variedade e frequentemente insuficiente, com relatos de falta regular de leite e pão sendo substituído por bolachas.
Unidade de Acolhimento "Estrada da Guia":
A unidade, com 50 leitos, estava com ocupação total no dia da inspeção (12/05/2025), e nem todos os acolhidos dispunham de travesseiros.
Não há banheiros adequados para pessoas trans, o que compromete a privacidade, segurança e dignidade desse público.
A unidade enfrenta sérios problemas de abastecimento de água, recebendo fornecimento por caminhão pipa em dias alternados que se esgota no mesmo dia, deixando acolhidos e trabalhadores sem água potável, banho, limpeza ou preparo de alimentos.
Foi constatado um vazamento expressivo em um dos banheiros, agravando a escassez de água e a salubridade.
A área externa do pátio tem vegetação alta, prejudicando a utilização plena.
A única máquina de lavar está inoperante, dificultando a higiene das roupas.
A equipe multidisciplinar (um psicólogo e uma assistente social) é insuficiente para a demanda.
A unidade está localizada em área extremamente afastada da zona urbana, com acesso precário e distante dos principais centros de serviços públicos, dificultando a mobilidade dos acolhidos, especialmente idosos e famílias com crianças.
Associação Terapêutica Ambiental e Acolhimento Paraíso (ATAAP):
A unidade tem capacidade para aproximadamente 150 pessoas e estava com 141 leitos ocupados na inspeção (13/05/2025).
Alguns banheiros masculinos não possuem portas, utilizando cortinas, e a higiene de alguns desses banheiros foi considerada aquém do ideal.
Há apenas um bebedouro de uso coletivo para cerca de 150 acolhidos, considerado insuficiente para a demanda.
A equipe multidisciplinar (uma psicóloga, duas assistentes sociais) é inferior ao recomendado pelas normas técnicas, e não há educador físico na equipe.
Apesar de rara, a falta de produtos de limpeza pode ocorrer ocasionalmente devido a atrasos no repasse da verba.
Os guarda-volumes são insuficientes, levando ao armazenamento avulso de pertences nos maleiros, comprometendo a organização e segurança.
A unidade acolhe cadeirantes, mas não dispõe de adaptações estruturais de acessibilidade, como rampas ou passarelas, e o pátio não é pavimentado e tem ondulações que dificultam a locomoção.
Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP):
O imóvel utilizado é locado e considerado manifestamente inadequado para a finalidade, com acúmulo de lixo e pombos na entrada.
Há apenas um banheiro, de uso compartilhado entre homens, mulheres e crianças, em condições precárias e sem portas, comprometendo a privacidade e dignidade.
Não há chuveiros ou estrutura adequada para higiene pessoal; os banhos são realizados em área descoberta com uma única mangueira ao lado dos tanques de lavar roupa e escovar dentes.
Faltam espaços adequados para convivência, atividades coletivas e oficinas.
A equipe técnica (3 técnicos) é significativamente inferior ao recomendado (quatro vezes superior à demanda ideal por técnico) e insuficiente para atender a uma demanda de 350 a 400 atendimentos por mês.
Não há sistema informatizado ou protocolo formal para gestão de vagas e comunicação com as unidades de acolhimento, utilizando planilhas internas que dificultam a atualização e o encaminhamento.
Não há atendimento para cadastramento ou atualização do CadÚnico.
Há relatos de recusa de atendimento pelo SAMU a pessoas em surto psicótico, direcionadas equivocadamente ao Centro POP.
A segurança é precária, com vigilantes sem atribuição de contenção e ausência de câmeras de segurança externas. Há presença constante de facções criminosas nas imediações/interior da unidade, afetando usuários e servidores.
A guarda de documentos e pertences é precária, com armários insuficientes e sem cadeados adequados, levando ao armazenamento conjunto e risco de extravio.
Pedido da Defensoria
Diante desse quadro, a Defensoria Pública solicitou à Justiça a concessão de tutela de urgência para que o Município de Cuiabá elabore e apresente um Plano Emergencial de Reestruturação e Ampliação das Unidades de Acolhimento, garantindo atendimento integral à demanda real em 90 dias.
As exigências incluem fornecimento regular de alimentação e higiene, guarda-volumes seguros, contratação de equipe técnica e de segurança suficientes, espaços adequados para atividades, regularização documental, abastecimento contínuo de água, programas de capacitação e reinserção profissional, sistema integrado de gestão de vagas, e espaços específicos para grupos vulneráveis (mulheres, crianças, idosos, LGBTQIA+, pessoas com deficiência).
A ação também pede planos de reestruturação da logística de transporte e abastecimento de água na unidade da Estrada da Guia, reestruturação e ampliação do Centro POP, e disponibilização de um espaço digno para refeições diárias. É solicitada a imposição de multa diária de R$ 50.000,00 em caso de descumprimento.