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Quinta-feira, 28 de março de 2024

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​QUEBRA DE CICLO

“A mulher precisa despertar que isso não é normal”, diz juíza que atua 8 anos na Vara de Violência Doméstica

Foto: Reprodução

“A mulher precisa despertar que isso não é normal”, diz juíza que atua 8 anos na Vara de Violência Doméstica
No ano de 2019 a Justiça de Mato Grosso recebeu 6455 pedidos de medidas protetivas para vítimas de violência doméstica. Deste total, 6351 foram concedidas. Em Cuiabá, se concentra a maior parte da demanda, com média de 100 sentenças por mês. A juíza Tatiane Colombo 2ª Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher da capital, afirmou que é difícil para a mulher romper sozinha o ciclo da violência em que está inserida, porém, disse que é importante a busca por ajuda e o entendimento de que o homem que agride uma vez, pode agredir novamente.
 
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Os processos são distribuídos para quatro juízes que atuam no Fórum da Capital em duas Varas Especializadas, com dois gabinetes cada. A 1ª Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher é dividida pelos juízes, Jamilson Haddad Campos e Ana Graziela Vaz de Campos Alves Corrêa. E a 2ª Vara tem como titulares os magistrados Jeverson Luiz Quintierio e Tatiane Colombo.
 
A juíza Tatiane Colombo tem 45 anos, é divorciada, mãe de uma menina e magistrada há 20 anos. Desde 2012 atua na Vara que combate violência contra mulher na Capital. Antes de atuar em Cuiabá, Tatiane Colombo jurisdicionou nas Comarcas de Juara, Nova Xavantina, Rosário Oeste, Nobres, Diamantino e Tangará da Serra.
 
Nesta semana, a juíza conversou com a Coordenadoria de Comunicação do Tribunal de Justiça sobre os avanços conquistados com o advento da Lei 11.340/06, conhecida por Lei Maria da Penha, o círculo da violência e a necessidade da vítima rompê-lo e os desafios enfrentados pelos magistrados que atuam na área.
 
Qual a função da Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher?
 
Olhar para todos os processos que há algum tipo de violência contra o gênero feminino, no âmbito familiar. Pode ocorrer entre cônjuges, parentes como pai e filha, irmão e irmã, até entre irmãs, desde que seja no ambiente familiar.
 
Quais os tipos de violência contra mulher previstos na Lei Maria da Penha?
 
A lei prevê a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; a violência psicológica, comportamento que cause dano emocional e diminuição da autoestima da mulher; a violência sexual; violência patrimonial, retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; e a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
 
Qual a importância da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), que este ano comemora 14 anos?
 
Quando fiz uma pós-graduação em Processo Penal trabalhei com a criminalização da violência doméstica, isso há muitos anos, antes da lei. Meu trabalho foi em Várzea Grande e região. Fiz todo o apanhado e coloquei a necessidade disso. As pessoas deixavam o assunto debaixo do tapete, tudo era um pano de fundo. Hoje com a lei temos possibilidades de políticas públicas, de realmente olhar e ver quais são os tipos de violência que as mulheres sofrem e trabalhar para o Judiciário determinar as medidas protetivas e tentar dar a maior eficácia possível, tentando adequar cada caso concreto e imputar uma pena quando necessário.
 
Tivemos uma tentativa de mudança na Lei, de se propor medidas que não sejam as judiciais para caso de violência doméstica, mas a violência doméstica ficou de fora. Quer dizer, vamos poder trabalhar sem barganhar a pena. O Ministério Público e o judiciário vão poder dar a devida importância ao combate à violência doméstica. Uma bandeira efetiva. Hoje a lei é respeitada.
 
Há um crescimento dos casos? A que se deve isso?
 
Eu acredito que tivemos acesso ao real número de casos, o que acontece dentro das famílias. Segundo ponto é que começamos a ver o que é realmente violência. E como a violência é um fator crescente devido a problemas sociais, também percebemos um incremento no âmbito familiar.
 
Observamos três esferas. A primeira de que a lei é jovem, a gente ainda tem muito que aprender, ainda existe a necessidade desse assunto ir para as escolas, trazer este ensinamento da lei para as crianças e adolescentes e conscientizar que a denúncia é algo positivo, pois melhora a qualidade de vida de mulheres que sofrem.
 
Li que em Cuiabá não tivemos nenhum caso de feminicídio em 2019. Nossa que maravilha! Quando começamos este trabalho de combate à violência contra mulher, elencamos os casos de morte de mulheres a cada e como é bom chegarmos em 2019 sem vítimas fatais.
 
Quando se fala da violência contra mulher sempre é abordado o círculo da violência. Explique para gente este círculo.
 
Para melhor entendimento vou contar uma historinha. Uma moça conhece um rapaz, começam a namorar e passam a viver juntos em uma casa. O felizes para sempre não é bem real. Ela não percebe, mas durante todo o relacionamento deles, o homem dá pequenos sinais de que é um possível agressor doméstico. Mas como tem a paixão, aquele início de relacionamento, eles resolvem seguir juntos. Mas chega uma hora, que essa lua de mel acaba e chega a realidade. Começam desentendimentos, xingamento, um empurrão, proíbe ela de falar com a família e amigos, chama a mulher de burra, de feia, diz que não sabe fazer nada direito, exige que ela lhe sirva do jeito que ele quer, e assim vai evoluindo, proíbe de trabalhar fora e quando ela trabalha exige que ela entregue todo o salário. Desse jeito ela passa a viver em função desse homem que controla ela como um todo. Até que ele bate nela. Ela vai na delegacia fazer queixa. Ele pede perdão, admite que errou e que nunca mais fará isso de novo. Volta aquela fase da lua de mel. Acabou essa fase, ele faz pior.
 
A mulher vive em uma gaiola dourada. Ela vive ali como um passarinho, sabe aqueles experimentos que mostram que a ave é condicionada a ficar na gaiola, porque toda vez que tenta sair leva um choque? Até que um dia, alguém deixa a porta da gaiola aberta e a ave não sai por medo do choque. A mulher fica assim, acredita que ela é burra, feia, incapaz, acredita em tudo que ele falou, se acha culpada e que merece aquela agressão. E ela precisa quebrar essa gaiola dourada.
 
A mulher é capaz de romper esse ciclo sozinha?
 
Sozinha é muito difícil. A mulher precisa despertar que isso não é normal, ela enfrenta muitos desafios. Às vezes a própria família, os filhos, a sociedade até hoje não vê com bons olhos uma mulher divorciada ou que não tem perspectiva de se casar. A mulher é obrigada socialmente a ter um relacionamento “perfeito”, quadradinho, padrão.
 
Agora vivemos um momento de transformação. Hoje temos algumas políticas públicas que auxiliam as mulheres, já conseguimos implantar oficinas de constelação, círculos restaurativos, enviar para tratamento psicossocial com parceria com a prefeitura e o Estado. Temos várias frentes. Já evoluímos, mas ainda é preciso mais.
 
Aqui temos a Patrulha Maria da Penha, alguns lugares têm as Redes de Apoio. É um tratamento adequado para a vítima, quando ela procura um atendimento médico porque apanhou, IML para fazer exame de corpo de delito, Delegacia da Mulher que funcione 24h com profissionais que possam atender de forma diferenciada. Já tivemos notícias de mulheres que procuraram ajuda e ouviram do atendente: a senhora tem certeza que vai denunciar o seu marido?
 
Violência doméstica não escolhe classe social, condição financeira, cargos ocupados, todas nós mulheres, desde trabalhadoras dos postos mais simples até os cargos com maiores responsabilidades, se não passamos por casos de violência estivemos muito próximas de sermos vítimas.
 
Qual o primeiro passo que a mulher vítima de uma violência doméstica deve dar?
 
Procurar a delegacia e fazer um registro formal daquela queixa. Ali contar toda a história de tudo que acontece desde o início. Quanto mais detalhes ela levar nesta oportunidade, maiores serão as chances de que aquele processo, quando vier para a Justiça, tenha um tratamento mais identificado com ela.
 
O que ainda precisa ser feito para o combate à violência doméstica?
 
Ainda falta tanto, a educação nas escolas, o combate ao machismo, ensinar que temos que viver sem violência e respeitando a mulher. A família comandada pelo patriarca, que manda em tudo e todos, ainda está no nosso imaginário. Temos grandes marcos na evolução do papel da mulher na sociedade. Para mim, os significativos foram na década de 30 com o direito ao voto, em 1977 a Lei do Divórcio, a Constituição de 1988 e em 2006 a Lei Maria da Penha.
 
Hoje quais são os maiores desafios para o juiz da área?
 
Apesar de todo mundo pensar que ser juíza da Vara de Violência Doméstica é muito pesado, eu digo que é uma oportunidade de dar efetividade para a decisão judicial, frente a tantas questões que exigem tanto carinho e atenção e nosso maior desafio é dar esta efetividade.

Nós fazemos o máximo, mas saber que aquela pessoa conseguiu fazer um acordo, que as partes conseguem olhar para as suas questões e não deixam os filhos serem esquecidos por conta do problema do casal. Quando estamos em um processo, de feminícidio, por exemplo, saber fazer um trabalho bem feito, uma instrução impecável... isso é nosso dia a dia e o nosso maior desafio. É ter a efetividade nas decisões que damos, tanto cíveis quanto criminais.
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