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Nova Lei de Improbidade e suas significativas mudanças

Valber Melo


No dia 25 de outubro, entrou em vigor a Lei Federal 14.230/21, que reformulou, de forma substancial, a Lei 8.429/1992, trazendo sensíveis modificações na matéria de improbidade administrativa.
 
A novel lei não chegou a revogar completamente a lei 8.429/92, mas promoveu alterações significativas, modificando substancialmente o eixo da antiga lei de improbidade.
 
As modificações trouxeram a discussão diversos pontos que deverão ser cuidadosamente observados sob a égide da nova sistemática. Dentre eles, podemos destacar:

a) Não existe mais a previsão de ato de improbidade culposo (Art. 1º § 1º Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais);

b) As condutas da novel lei de improbidade passaram a exigir o dolo específico (Art.   1º "§ 2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente”);

c) Maior proteção ao bom gestor público que muitas vezes se via desmotivado a continuar na gestão, por conta da má interpretação da antiga lei. Na prática, muitas das vezes, o gestor era arrastado para o polo passivo da ação, simplesmente pela posição que ocupava, como se fosse responsável por todos os atos no âmbito de sua gestão. (Art. 1º § 3º O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa);

d)  Previsão expressa de aplicabilidade na lei de improbidade dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador. Uma das principais inovações e há muito esperado pela doutrina. Tal previsão abriu margem para a discussão da retroatividade, dentre outras questões que se encontram, inclusive, afeta atualmente a matéria de repercussão geral no âmbito do Supremo Tribunal Federal (§ 4º Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador);

e) Exclusão da incidência da lei de improbidade no que toca as entidades privadas que não recebam subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de entes públicos ou governamentais e cuja criação ou custeio o erário não haja concorrido (Art. 1º, § 6º e  § 7º );

f) Maior proteção aos sócios e diretores de pessoa jurídica, que muitas vezes, por má interpretação da “antiga” lei 8.429/92, eram incluídos na demanda simplesmente por ser sócios ou diretores, sem qualquer participação concreta e sem qualquer benefício direto[1] (Art. 3 º§ 1º);

g) Os atos de improbidade por violação a princípios, além de exigirem dolo específico, deixaram de ser genéricos, de tipos abertos e deixaram de ser uma espécie de “norma penal em branco”, passando a ser enumerados em rol taxativo (art. 11 da Lei nº 8.429/92). Essa foi uma importantíssima inovação, pois a antiga redação aberta de conceitos jurídicos indeterminados acabava deixando a critério do autor da ação, o poder exacerbado de decidir o que configuraria ou não improbidade administrativa, afastando e desestimulando os bons gestores que muitas vezes se viam processados por meras irregularidades, sem qualquer prejuízo a administração;
 
h) Quanto aos atos do artigo 11º, a novel Lei nº 14.230/2021 também trouxe a exigência de lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para efeitos de aplicação da sanção (artigo 11, §4º, da LIA);

i) Extinção da pena de suspensão dos direitos políticos e perda da função pública para os atos de improbidade descritos no artigo 11 da lei 8.429/92. Nas hipóteses do artigo 11º, apenas as sanções de multa e proibição de contratar com o poder público são aplicáveis (artigo 12º, III). Em caso de retroatividade, a nova redação dará margem para rediscutir aqueles casos de agentes públicos e servidores que perderam o cargo somente pelas violações dos princípios da administração pública, sem qualquer enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário;

j) A pena de perda da função pública, nos casos de atos de improbidade que configurem em enriquecimento ilícito (art.9) e lesão ao erário (art. 10), alcançará apenas o vínculo da mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração (artigo 12, §1º, da LIA);

k) Passou a existir previsão expressa do início da contagem do prazo da sanção de suspensão de direitos políticos (Art. 12. § 10. Para efeitos de contagem do prazo da sanção de suspensão dos direitos políticos, computar-se-á retroativamente o intervalo de tempo entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado da sentença condenatória);    

l) O legislador impôs expressamente que o Ministério Público demonstre na petição inicial a viabilidade da ação de improbidade, sob pena de rejeição da mesma. A novel lei tornou mais criteriosa a propositura da ação de improbidade, evitando, assim, ações sem qualquer lastro probatório, que se arrastavam no tempo sem qualquer justa causa, e causando prejuízos e constrangimento aos atingidos. Nesse ponto, o legislador foi categórico ao positivar que a inicial “deverá individualizar a conduta do réu e apontar os elementos probatórios mínimos e será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo” (Art 17, § 6º, I e II);

m) Impossibilidade de o magistrado condenar os demandados por atos diversos dos descritos na petição inicial, fulminando-se com odiosa “denúncia alternativa” (Art.  17 § 10-F, I);

n) Rompimento com a jurisprudência sedimentada dos Tribunais no sentido que bastava para decretação da indisponibilidade o periculum in mora presumido. Na novel lei, para que os bens sejam bloqueados torna-se necessário a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo (art. 16 § 3º);

o) Fixação como regra para a decretação de indisponibilidade, a oitiva prévia do demandado exceto quando o contraditório prévio puder comprovadamente frustrar a efetividade da medida (art 16 §4 º);

p) O Ministério Público passa a ter exclusividade de propor a ação de improbidade, excluindo-se, assim, a legitimidade concorrente da pessoa jurídica lesada (art. 17º, caput[2]). Tal previsão foi recentemente suspensa liminarmente, até o julgamento de mérito, pelo Min. Alexandre de Moraes do STF ao analisar duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, ajuizadas pela Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal – ANAPE (ADI 7042) e pela Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais – ANAFE (ADI 7043).

q) Acordo de não persecução civil, que pode ser celebrado pelo Ministério Público em qualquer fase (investigação, processo ou execução) desde que seja possível o integral ressarcimento do dano e a reversão a pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados (art. 17-B);

r) Passou a existir um critério no que toca a ordem de indisponilidade de bens. Não existia previsão na antiga redação. Os bens eram bloqueados indiscriminadamente até o postulado montante. Agora, a novel lei estabeleceu que primeiro devem ser bloqueados os veículos, bens imóveis, bens móveis, semoventes, navios e aeronaves, ações e cotas de sociedade, pedras e metais preciosos e apenas na inexistência desses, o bloqueio de contas bancárias, de forma a garantir a subsistência do demandado e de sua família e a manutenção de sua atividade empresarial ( Art. 16 § 11);

s) Proibição de decretação de indisponibilidade de bem de família, exceto se o imóvel for adquirido com vantagem patrimonial indevida (Art. 16 § 14). Tal previsão rompeu com a jurisprudência sedimentada que vinha admitindo indisponibilidade de bens de família na ação de improbidade de forma indiscriminada;

t) Criação de um novo regime de prescrição, fixando-se o prazo de oito anos da data do fato ou dia que cessou a permanência (art. 23, caput[3]),bem como criação de marcos interruptivos (§ 4º[4]), semelhantes ao que ocorre no direito penal, instituindo-se também na lei de improbidade a chamada prescrição intercorrente, que impõe que entre a inicial e a sentença não decorra prazo superior a quatro anos. O novo regime de prescrição, matéria que já conta com maioria para ser afetada por meio da repercussão geral no âmbito do STF, em caso de retroatividade,  será responsável pela extinção de inúmeras ações de improbidade que tramitam há décadas nas mais variadas esferas do Poder Judiciário;[5]
u) Proibição de bis in idem.

Em que pese os atos de improbidade possam repercutir ao mesmo tempo em diversas instancias (penal, cível e administrativa), ao trazer a proibição expressa do non bis in idem, o legislador disciplinou que as sanções referentes a lei de improbidade não podem ser cumuladas com as da Lei Anticorrupção (Lei 12.843/13).

Ademais, a nova lei também solucionou um problema que existia desde quando foi promulgada a lei 8.429/92, pois na antiga redação nem toda causa de absolvição projetava efeitos na ação de improbidade, por conta do princípio da independência das instancias. Agora, com a novel lei, em caso de absolvição pelos mesmos fato na esfera penal, com decisão absolutória mantida pelo colegiado, independente da modalidade de absolvição do artigo 386 do CPP, a ação de improbidade deverá ser extinta. (artigo 21, §4º)[6].  

Se não bastasse, o legislador ainda trouxe a previsão no  § 3º  do mesmo artigo 21 que “as sentenças civis e penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria”.
                       
Como se vê, com o advento da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, em que pese as críticas, foram inúmeras as mudanças, que trouxeram um filtro muito maior com a finalidade de evitar o manejo indiscrimado e infundado de ações, que acabavam por desestimular os bons gestores a não mais participarem da administração pública.
                       
Com a nova sistemática, ao adotar no âmbito da lei de improbidade os princípios do direito administrativo sancionador, o legislador nada mais fez do que limitar o poder persecutório do estado, ampliando o espectro de garantias constitucionais aos demandados e afastando do intérprete o manejo indevido de ações, notadamente pelo fato da antiga redação possuir conceitos extremamente abertos e nocivos aqueles que figuram no polo passivo da ação de improbidade.
                       
Por fim, malgrado a Lei 8.429/92 não tenha sido completamente revogada, as modificações foram tantas e inúmeras que não é forçado dizer que o que está em vigor é uma novel Lei de Improbidade, que produzirá efeitos não somente a partir da entrada em vigor do novo regime, mas também trará profundos impactos nos processos em andamento.

Valber Melo é advogado criminalista, professor de Direito Penal e Processual Penal, doutor em direito pela UMSA, especialista em Direito Penal Econômico, especialista em Direito Penal e Processual Penal, , especialista em Direito Público, pós-graduado em ciências criminais, autor de livros e artigos jurídicos, conselheiro nacional da Abracrim-MT .

 
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