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Por mais Alices e menos Rainhas

Grhegory P P M Maia

“A tragédia da vida é que ficamos velhos cedo demais. E, sábios, tarde demais!”. Ontem, lendo um texto para aula de doutorado, deparei-me com Benjamin Franklin. Mas, afinal, o que vinha ele me dizer? Uns minutos refletindo e pronto. De repente, tudo fez sentido. Esse pensamento resume não só a minha vida, como a de muitos. Para além do momento acadêmico em que me encontrava, a lição sobre a sabedoria atravessa os muros e ampara também a realidade do “estado democrático de direito” em seu dever de agir com eficiência e respeito aos direitos fundamentais.

Nossa sabedoria amadurece tarde; mas isso é bom, pois a sabedoria traz consigo a reflexão de quando devemos agir em certas ocasiões. Sejamos racionais e abstraiamos, afastando-se da guerra “que não compensa”. Isto é, sejamos seletivos na arte beligerante, na escolha dos conflitos cotidianos. Assim, com sorte, podemos ser cada vez mais sábios. Um olhar atento e cuidadoso nos traz de volta.  

A literatura, de maneira geral, tem a notável capacidade de condensar a natureza humana de diversas formas. É por isso que nos serve tanto. Ela ensina. É por meio de suas representações que adquirimos consciência crítica e política da realidade que nos circunda. Ela estabelece ligações com todos os ramos do conhecimento e por eles transita. Não é diferente com o direito e a literatura.  Ela traz o que no direito falta. Dialoga e possibilita o encontro “do mundo narrado com o mundo vivido, possibilitando um desvelamento do “ser”. Um aprendizado com a experiência do outro, uma fusão de horizontes, que amplia a visão do sujeito sobre a realidade” (SOARES, Guilherme; FONTANIVE, Thiago, 2018).

Nesse sentido, trazendo para o mundo vivido, do mesmo modo que Lewis Carroll buscou retratar o seu contexto social com sua obra “Alice no país das maravilhas”, podemos relacionar suas ideias do mundo narrado com nossa atual realidade.

A sociedade ali retratada se mostrava totalmente submissa à influência do rei e da rainha, não se revelava questionadora e muito menos reflexiva sobre a realidade de sua época, pelo contrário, era totalmente dominada e controlada. Assim, os monarcas usavam e abusavam de seu poder, ignorando por completo o devido processo legal ou qualquer ideal de justiça, para mandar “cortar a cabeça” de qualquer um que se opusesse às suas ideias.

Alice, durante toda a obra, entende que adultos não são confiáveis, são ilógicos e, por assim dizer, insanos. A menina é a única a questionar, mostrar-se preocupada e inconformada com o modo pelo qual a sociedade se submete aos abusos dos detentores do poder e aceita todas as injustiças e atrocidades cometidas. E, por fim, é Alice quem “acorda para a realidade”.

É importante ter em mente que, não importa o momento, sempre é tempo para combater os abusos e excessos. Estar sempre de olhos abertos. Atento ao tempo e à realidade. Podemos, sim, personificar os corajosos heróis literários. Inclusive enquanto cidadãos, advogados, juízes, promotores, enfim, operadores do direito. Não podemos deixar que o devido processo legal, garantia constitucional, seja simplesmente ignorado. É preciso questionar, mesmo quando isto signifique nadar contra a maré.

Nesta senda, voltando nossa reflexão a uma realidade mais palpável, registro que muitos ignoram a importância do processo - estruturado, com regras predefinidas. Temporário, e não perene. Sim, o tempo faz parte da garantia fundamental do devido processo legal. Há, sim, um direito fundamental “de ser julgado em um prazo razoável”, consagrado expressamente no inciso LXXVIII do art. 5º da Carta Magna.

O tempo não pode funcionar como uma pena, método kafkaesco de administração de Justiça (pergunta-se: quem de nós, mesmo advogados, saberia agir se estivéssemos na posição de Josef K.?). Ora, tanto a celeridade demasiada (que anda de mãos dadas a atropelos legais) quanto a letargia configuram ameaças aos direitos fundamentais dos cidadãos submetidos a processo (ou inquérito) penal.

Já alertara Aury Lopes Júnior: “a pena é tempo e o tempo é pena”.

Nesse sentido, poucos - verdadeiramente poucos, e apenas os que acompanharam de perto o desenrolar investigativo e judicial - entenderam o tamanho da gravidade que foi o afastamento dos conselheiros Antonio Joaquim, José Carlos Novelli, Valter Albano e Waldir Júlio Teis. Submetidos a um inquérito kafkiano, que tendia à perenização (sem oferecimento de denúncia, que fique claro), seu ostracismo forçado apenas pode ser entendido como tentativa de desestabilizar e deslegitimar a Corte de Contas mato-grossense.

Diferentemente, contudo, de Josef K. (e aqui faço nova alusão a ‘O Processo’, de Franz Kafka, que fica de dica-de-leitura a todos que olham torto a um verdadeiro e autêntico garantismo penal), os conselheiros incorporaram Alice, e questionaram diretamente no Supremo Tribunal Federal a desconsideração de seus direitos e das regras do jogo. Mais, questionaram qual que é o interesse de mantê-los afastados de suas funções constitucionais, previstas no art. 49 da Constituição Estadual.

Apenas questionando obtiveram êxito. E servem de exemplo para todos que sofrem o odioso mal da injustiça.

Como tudo na vida, como um truque de mágica, em um “país das maravilhas”, deparei-me com um dos momentos mais emocionantes da vida: o reencontro de quatro amigos (calejados, mas maduros em decidir a quem confiar aos seus lados) que, juntos com seus advogados, aos quais me rendo em homenageá-los na pessoa do sul-mato-grossense, Dr. Lázaro José Gomes Junior, puderam acreditar na força do destino que os uniriam novamente para, ladeados de pessoas escolhidas com a seleção natural que o sofrimento impôs, buscar o restabelecimento de uma instituição tão nobre e que viveu períodos de “trevas” ao habitar “adultos não confiáveis”.

Concordo com Manoel de Barros sobre ter “o privilégio de não saber quase tudo”, mas, se pudesse arriscar em algo que sei ou que aprendi, diria que a felicidade não está só em viver, mas em saber viver. Não vive mais o que mais vive, mas o que melhor vive, porque a vida não mede o tempo, mas o emprego que dela fazemos e em prol das batalhas escolhidas com sabedoria.

 Por tudo isso, que sejamos todos mais Alice e menos Rainha.

Grhegory P P M Maia é Procurador de carreira da Assembleia Legislativa de Mato Grosso; atual consultor jurídico geral do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso; doutorando em direito constitucional; professor da UFMT.
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