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Quando crime é tratado como simples conflito e a violência ultrapassa os muros da razoabilidade

Nilse Berlatto Leite


A lei 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, criou mecanismos de proteção e defesa para coibir o problema de violência doméstica, estipulando as diversas formas de violência: física, psicológica, sexual e dano patrimonial e moral. Ela nasceu da necessidade de assegurar direitos básicos à mulher no âmbito familiar.

O artigo 5º dispõe que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

Contudo, embora erroneamente propagado, a violência não é praticada somente pelo marido/companheiro. Podem ser agressoras as pessoas que convivem sob o mesmo teto, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas (art. 5º, I) e os indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa (art. 5º, II). Em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação, também configura violência doméstica (art. 5º, III).

Da breve leitura do texto legal se verifica que nem todos os tipos de violência podem ser comprovados pela vítima. Muitas vezes a violência é revestida de amor excessivo, de cuidado exagerado, da necessidade de demonstrar esse sentimento publicamente. Outras vezes a explicação para a violência se dá por culpa da própria vítima, que sua atitude causou um ataque de ciúme que culminou numa violência desnecessária.

Sim, desnecessária, porque toda violência é dispensável, não importa qual seja a atitude e em qual âmbito esteja inserida.

Mas, e quando a vítima não consegue demonstrar que sofreu a violência? Quando a ação do agressor não deixou marcas visíveis ou, quem sabe, culminou com a sua morte, ocasião em que, em muitos casos, ela se transforma em algoz?

Por isso a importância de não somente as mulheres, mas a sociedade como um todo conhecer das diversas formas de violência e, embora possam ser vítimas de violências no âmbito familiar também as crianças e idosos, cada uma amparada por legislação específica, neste momento o foco é a mulher.

A violência física é a mais fácil de ser identificada, pois é atingida a integridade da vítima. Pode se dar por espancamento, estrangulamento ou sufocamento, lesões com objetos cortantes ou perfurantes, ferimentos causados por queimaduras ou armas de fogo e tortura. São as lesões visíveis.

A violência psicológica causa dano emocional e diminuição da autoestima da vítima, prejudica e perturba o pleno desenvolvimento da mulher ou tem por objetivo degradar ou controlar suas ações, comportamentos e decisões. Pode ocorrer por meio de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, insulto, chantagem e outras ações que controlem a liberdade da mulher.

A violência sexual se configura quando a conduta constrange a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força, podendo, inclusive, configurar estupro. A violência sexual também ocorre quando a mulher é obrigada à prática de atos sexuais que lhe causam desconforto ou repulsa, ou ainda impedir o uso de métodos contraceptivos, ou forçá-la a abortar.

Outra forma de violência praticada contra a mulher é o dano patrimonial, que se configura com a retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades pessoais.

A violência moral é aquela conduta que configura calúnia, difamação ou injúria, como acusar a mulher de traição, emitir juízos morais sobre sua conduta, fazer críticas mentirosas, expor a vida íntima, rebaixar a mulher por meio de xingamentos que incidem sobre a sua índole e desvalorizá-la pelo seu modo de se vestir.

Quando as marcas da agressão não são visíveis, a violência pode ser ainda maior. Além da violência sofrida pelo agressor, ainda paira sobre a mulher o julgamento da sociedade, caso denuncie.

Não é possível admitir e tratar a violência como um simples conflito doméstico, pois não é. Conflito é, por exemplo, divergir num posicionamento e conversar sobre isso. Violência é ultrapassar este limite.

A época que ‘em briga de marido e mulher não se mete a colher’, passou. Atualmente, deixar de denunciar uma violência pode significar ser conivente com mais uma morte. Conflitos todos enfrentam. Crime deve ser tratado como tal.




Nilse Berlatto Leite, advogada, mediadora certificada pelo TJ/MT, vice-presidente da Comissão dos Direitos da Mulher e membro da Comissão de Direito das Famílias e Sucessões da Associação Brasileira de Advogados - ABA, em Mato Grosso
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