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Sexta-feira, 19 de abril de 2024

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Índio pode tudo nesse país (!?)

Há alguns dias foi feito um acordo entre os Kaiapó e a GOL que assegurou uma indenização milionária aos índios pelos danos causados pela queda de um avião próximo à comunidade. Acompanhando a repercussão do caso na internet, um comentário me chamou a atenção: “Índio pode tudo nesse país”.

Essas palavras me remeteram a abril de 2013, exatos 4 anos atrás, quando iniciei minhas atividades no Ministério Público Federal na fronteira com o Paraguai, em Ponta Porã-MS, cuja área de atuação abrange 11 municípios, nos quais vivem cerca de 20 mil índios Guarani-Kaiowá e Guarani-Ñandeva.

Nas minhas primeiras visitas às aldeias, uma constatação saltou aos olhos: faltavam aos índios os serviços mais essenciais. Atendimento à saúde era inadequado, não havia escolas nas Terras Indígenas e as cestas básicas, principal fonte de alimento para quem não pode plantar, nem sempre eram entregues.

Com muito trabalho, aos poucos passaram a ser construídas escolas em algumas Terras Indígenas, o atendimento à saúde melhorou e as cestas de alimento voltaram a ser distribuídas.

Mas o problema estava longe de uma solução.

Mesmo com algumas escolas construídas, muitas crianças continuavam sem estudar, pois não tinham documentos, o que impedia a matrícula.

Mesmo melhorando o serviço de saúde, muitos indígenas continuavam impossibilitados de receber atendimento médico de média ou alta complexidade, pois não tinham documentos para ser transferidos.

Mesmo as cestas sendo entregues, as famílias mais vulneráveis continuavam de fora do programa de segurança alimentar, pois não tinham os documentos exigidos.

E não se tratava de uma simples negativa de acesso à documentação. Havia algo muito maior: no Mato Grosso do Sul, os indígenas passam por um processo de “invisibilização”, sob o argumento de que são todos paraguaios.

Nem mesmo as crianças, nascidas em solo brasileiro, têm garantida a documentação, pois tal direito foi negado, anteriormente, aos seus pais. E a falta de documentos se revela ainda mais grave quando crianças indígenas são encaminhadas para “adoção” por famílias não-índias sem conhecimento da FUNAI, ou no caso de tráfico de seres humanos para o trabalho em lavouras de maconha no Paraguai.

E, hoje, com olhos mais experientes, vejo que a negativa de direitos aos povos indígenas não é exclusividade de Mato Grosso do Sul, ao contrário, se replica em vários pontos do país, das mais variadas maneiras, mas com uma só essência: nega-se ao índio o direito de ser índio, um ser humano como qualquer outro, pois índio, no Brasil, é ser humano de segunda categoria!

Ainda assim, há quem propague a ideia de que “índio pode tudo nesse país”.

Como pode tudo, se índio não tem acesso à educação e, quando tem, a escola não considera suas peculiaridades culturais?

Como pode tudo, se o atendimento à saúde não é de qualidade e, quando é, se limita à atenção básica?

Como pode tudo, se índio não pode plantar nas “áreas de conflito” nem tem acesso a cestas básicas?

Como pode tudo, se para o Estado brasileiro o índio não existe, pois não tem documentos?

Na verdade, índio pode muito pouco nesse país e, para alguns, nem mesmo receber indenização pelos danos causados pelo acidente do avião da GOL o índio pode…

O que vejo no Brasil é que índio não pode quase nada, sequer existir.

Negam-se documentos (existência jurídica). Negam-se territórios (existência cultural). Negam-se direitos básicos e fundamentais (existência material).

Mas, não posso ser injusto, há algo que o índio pode sim no Brasil: pode ver o país todo lembrar dele no dia 19 de abril e esquecer novamente no dia seguinte. Feliz Dia do Índio!

Ricardo Pael Ardenghi – Procurador da República em Mato Grosso – Titular do Ofício de Tutela de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais
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