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Quinta-feira, 28 de março de 2024

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Da independência funcional do Ministério Público em não

Não é de hoje que os criminosos atuam de modo organizado, com divisões de funções e hierarquia, com o objetivo de obterem vantagem financeira. No cenário mundial, a famigerada “Operação Mãos Limpas” visou desarticular a máfia italiana na década de 90. Já no Brasil, o famoso cangaço nordestino, liderado por Lampião, também ilustra a antiguidade das organizações criminosas.

O criminoso, como organismo social, sofre mutações e “evoluções”. O crime, cada vez mais, é protagonizado por uma multiplicidade de autores que se unem, organizadamente, para lesar particulares e os cofres públicos. Os tentáculos de uma organização alcançam empresários, servidores públicos e agentes políticos, o que garante altíssimo lucro financeiro e certo grau de impunidade.

É nesse cenário que o Estado, gestor e executor da jurisdição, deve acompanhar a “evolução” da criminalidade. O Brasil, de fato, vem desenvolvendo ferramentas jurídicas no combate ao crime organizado, notadamente após a promulgação da Convenção de Palermo através do Decreto nº 5.017/2004. Atualmente, a Lei nº 12.850/2013, traz, no seu regramento, importantes meios investigativos, a exemplo da colaboração premiada.

Não se pretende, neste artigo, debater os aspectos gerais da Lei de Combate ao Crime Organizado ou da colaboração premiada. A intenção, em verdade, é analisar a atuação do magistrado, à luz do sistema acusatório, no acordo de colaboração, especialmente em relação ao benefício previsto no §4º do art. 4º da Lei nº 12.850/2013 (não denunciação).

Visando garantir a imparcialidade do julgador, a legislação veda a participação do magistrado nas tratativas da colaboração premiada. Somente após a assinatura do “contrato” é que o magistrado será provocado a analisar os termos da colaboração. A submissão do acordo aos olhos atentos do Poder Judiciário é imprescindível, porquanto, neste caso, o juiz fiscalizará a regularidade, legalidade e voluntariedade do negócio jurídico.

Identificado vício, é dever do magistrado deixar de homologar o acordo ou, até mesmo, adequá-lo. É muito óbvio, assim, que a Lei nº 12.850/2013 confere ao juiz a função de fiscalizar a legalidade da colaboração premiada. A título de exemplo, o acordo celebrado sem a presença de advogado, ou que não atinja nenhum dos resultados elencados nos incisos do art. 4º da predita lei, não será homologado pelo Poder Judiciário.

Todavia, a função fiscalizatória conferida ao magistrado não lhe garante incursões exaurientes no mérito negocial delineado pelo Ministério Público (ou delegado de polícia) e o colaborador (acompanhado de seu advogado). O termo de acordo, antes de ser submetido à homologação, é fruto de intensa negociação entre as partes. Não existe contrato de colaboração por adesão, já que cada caso possui peculiaridades. Os benefícios ofertados ao pretenso colaborador, assim como os resultados advindos da colaboração, serão determinantes durante a fase das tratativas.

A possibilidade de adequação do termo de acordo previsto na Lei de Combate ao Crime Organizado decorre da função fiscalizatória do magistrado. Pode o juiz, evidentemente, adequar aspectos legais do acordo de colaboração. O mérito negocial, contudo, deve ser tratado exclusivamente pelas partes que entabularam o acordo.

Nesse contexto, não raramente, o Ministério Público, como parte acordante, propõe ao colaborador o não oferecimento de denúncia com base no art. 4º, §4º daLei nº 12.850/2013. Tal medida encontra amplo respaldo constitucional, já que o art. 129, I, da CF outorga ao promotor de justiça a legitimidade privativa para propor a ação penal pública. Em outros termos, é o Membro do Ministério Público que tem o “poder-dever” de incluir ou excluir o colaborador da ação penal, o que, evidentemente, será minuciosamente detalhado no acordo.

É de se registrar que o não oferecimento de denúncia não é novo no ordenamento jurídico. A Lei nº 9.099/95 já havia relativizado o princípio da obrigatoriedade por meioda transação penal, que também é uma espécie de acordo entre o Ministério Público e o autor do fato. Do mesmomodo, a Lei nº 12.850/2013 novamente mitigou o princípio da obrigatoriedade, eis que permite que o promotor de justiça acorde com o colaborador o não oferecimento de denúncia.

O magistrado, nesse contexto, assume a função de fiscalizar a legalidade do acordo e o princípio da obrigatoriedade. Isso significa que a legalidade do não oferecimento de denúncia deve ser submetida à análise pelo Poder Judiciário. É por isso que a promoção de arquivamento policial e a transação penal, por exemplo, e o próprio acordo de colaboração premiada, demandam homologação judicial.

No que se refere ao arquivamento do inquérito policial, caso o magistrado divirja do Ministério Público a solução é encontrada no art. 28 do CPP, que determina a remessa dos autos ao Procurador Geral de Justiça, a quem competirá a decisão final. A mesma premissa, segundo a jurisprudência nacional, é aplicada, por analogia, na transação penal. Isto é, no caso de não homologação do acordo de transação, os autos devem ser encaminhados ao Chefe do Ministério Público.

Por seu turno, em relação à cláusula de não denunciação inserta no acordo de colaboração premiada, também incide, analogicamente, o disposto no art. 28 do CPP. Na condição de “dominus litis”, é dado ao Ministério Público o poder de negociar a não inclusão do colaborar na ação penal. Já, ao magistrado, cabe, novamente, fiscalizar a legalidade do acordo, o que, contudo, deve ser balizado à luz do sistema acusatório.

Embora o magistrado, no exercício da função fiscalizatória, tenha legitimidade para discordar dos termos entabulados pelas partes, as atribuições constitucionais do Ministério Público são inderrogáveis. O promotor de justiça, ao negociarcom o colaborar o não oferecimento de denúncia, quis mitigar o princípio da obrigatoriedade e, portanto, não pode ser compelido, no caso de não homologação do acordo, a oferecer denúncia.

A independência funcional do promotor de justiça é preceito constitucional. Não existe hierarquia entre os Membros do Ministério Público e do Poder Judiciário. Cada um exerce função própria no sistema acusatório. A homologação do acordo compete ao magistrado, que agirá como fiscal da legalidade. No entanto, a não homologação, sobretudo da cláusula de não denunciação, implica em verdadeira tensão entre o Poder Judiciário e o Ministério Público.

Nesse contexto, o Membro do Ministério Público, que acordou a não denunciação, não pode ser compelido a denunciar o colaborador, sob pena afronta a sua independência funcional. Mais do que isso, é preciso sempre lembrar que a legitimidade para deflagrar a ação penal pública é privativa do Órgão Acusador Oficial. Qualquer disposição contrária seria manifestamente inconstitucional. É nesse contexto que a deliberação sobre o oferecimento ou não de denúncia deve permanecer, sempre, no âmbito da própria Instituição Ministerial.

O que se conclui, portanto, é que o magistrado, como fiscal da legalidade e do princípio da obrigatoriedade, pode deixar de homologar a cláusula de não denunciação do acordo de colaboração premiada, todavia, diante da independência funcional do promotor de justiça, os autos devem ser enviado ao Chefe do Ministério Público nos moldes do art. 28 do CPP, que terá atribuição para decidir se a denúncia será ou não oferecida em face do colaborador.


Hélio Nishiyama é especialista em Direito Penal e Processo Penal, Professor Universitário e advogado.
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