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Sexta-feira, 29 de março de 2024

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Um horizonte para a saúde brasileira

Quando pensamos em sistemas de saúde, logo nos vem à cabeça o setor público brasileiro, notoriamente reconhecido por sua fragilidade. Contudo, é necessário mudar essa visão e começar a pensar como gostaríamos, de fato, que essa rede funcionasse para que possamos adotar atitudes reais e efetivas. Para tanto, devemos observar atentamente dois ótimos exemplos - os sistemas de saúde europeu e americano -, valendo reforçar que a lei que originou o Sistema Único de Saúde (SUS) foi inspirada, inicialmente, no sistema europeu.

O presente trabalho não pretende discutir políticas públicas de saúde, modalidades de financiamento do sistema atual ou ideologias partidárias. Ele se pauta em apresentar um norte no qual o sistema público de saúde do Brasil possa se enquadrar e iniciar uma longa jornada de desenvolvimento, com o simples objetivo de fazer com que funcione conforme foi idealizado.

Os modelos europeu e americano passaram por grandes reformas ao longo dos últimos anos, e, mais recentemente, o sistema americano está mais uma vez experimentando uma nova reformulação, considerada por muitos como utópica. Apesar disso, a esmagadora maioria dos cidadãos americanos aprovou essa mudança, que introduz várias e renovadas políticas de saúde aplicadas aos sistemas público e privado.

Um fator muito importante é que o sistema americano atualmente em vigor já vinha sendo introduzido e aperfeiçoado há mais de uma década. Portanto, o que testemunhamos hoje é fruto de um trabalho concebido tempos atrás e que vem sendo desenvolvido com três grandes objetivos centrais: melhorar a acessibilidade, a qualidade do serviço e a redução de custos.

Neste texto, destaco exclusivamente no capítulo que trata sobre melhora da qualidade do serviço do sistema americano e a relação intrínseca existente com a redução de custos. O atual sistema alterou por completo a modalidade de remuneração dos prestadores, passando a adotar o “pagamento por performance”. Outra novidade que impactou a todos foi a criação do ACO (Accountable for Organizations), uma modalidade de pagamento originada na remuneração por pacote, só que agora englobando o pagamento de tratamentos completos.

Ambas as novidades surgiram de programas pilotos desenvolvidos por alguns hospitais e, principalmente, pelo Center for Medicaid and Medcare Services (CMS), gestor dos programas nacionais de saúde. Esse último pautou-se na identificação dos gargalos do sistema e na melhora da qualidade do serviço e a acessibilidade das pessoas, além da redução dos custos.

Os projetos foram desenvolvidos, inicialmente, para o controle do tratamento de algumas doenças, como pneumonia, infarto do miocárdio e problemas cardíacos. O programa foi criado em 2003 e se estendeu até 2007, sendo que 252 hospitais, de um total de 421, aceitaram participar da iniciativa. Em 2007, abrangeu as 17 doenças e tratamentos mais dispendiosos para o Governo.

O programa teve como meta identificar quais áreas concentravam os altos custos médicos e, a partir dessa avaliação, foram realizados estudos com diferentes frentes de análise. Nesses levantamentos, identificou-se que, por exemplo, as infecções hospitalares e a utilização de determinados protocolos médicos ocasionavam uma maior permanência do paciente internado. Além disso, pelo fato de existir um alto índice de redução no atendimento de pacientes, aumentando exponencialmente o custo de internação, foram criados protocolos buscando oferecer um atendimento médico mais completo, contribuindo para instituir metas para os médicos e demais membros do corpo clínico.

No início da implantação do programa, as medidas adotadas pareciam não surtir efeito, haja vista que os resultados práticos - ou seja, o dispêndio de dinheiro - eram muito similares quando comparados entre os hospitais que participavam do programa e aqueles que não tinham aderido à proposta. Contudo, com o passar dos anos, a adoção de protocolos médicos unificados, o engajamento do corpo clínico e diretivo e a redução do tempo de internação e das readmissões hospitalares demonstraram que, em longo prazo, o pagamento por performance, baseado em protocolos unificados, metas e bonificações, é uma solução que trouxe maior qualidade no atendimento dos pacientes. A adoção dessas práticas diminui o tempo de permanência no hospital e gera, consequentemente, uma economia significativa nos recursos do Governo.

Em 2010, entrou em vigor a primeira fase do chamado Obama Care, programa que é resultado dos anos de estudo feito pela CMS. Ele foi pensado em longo prazo, tanto que a sua implementação final está prevista para 2022. A reforma é altamente complexa e atinge a todos, compradores de serviços, tomadores, pacientes e profissionais da saúde.

A primeira fase vem se revelando a mais complicada porque houve o estabelecimento da obrigatoriedade de contratação de planos privados de saúde por parte de todos os cidadãos americanos (individual mandate). Tal disposição afeta a todos que puderem pagar. Contudo, o Governo Federal ou o Estado subsidiará parte do pagamento para aqueles que não puderem custear o valor total e, ainda, tentará enquadrar aqueles sem capacidade contributiva nos sistemas Medcaid ou Medcare, chamado de Expansão do Programa.

Além disso, ficou estabelecido que todos os hospitais, com ou sem fins lucrativos, participantes dos programas nacionais de saúde, serão pagos mediante o sistema de performance, ou seja, a sua remuneração deixará de ser free-for-service e passará a ser composta por um valor fixo e outro variável, no caso do atingimento das metas impostas. O sistema prevê que aqueles hospitais que conseguirem ficar acima da média nacional podem receber até 4% de sua receita mensal.

Outro fator importante para o sucesso do programa está diretamente ligado à melhora da remuneração dos médicos e enfermeiros. No entanto, esses também participam do pagamento por performance, podendo receber até 2% de seu salário, como bonificação, havendo metas de qualidade para todos.

É claro que o sistema brasileiro está a anos luz deste sistema. Entretanto, devemos observar pontos que podemos começar a implementar agora, tais como:

- Programa de Não Readmissão - Caso um paciente tenha sido atendido ou passado por cirurgia em determinado estabelecimento hospitalar e volte ao mesmo ou a outro hospital nos 30 primeiros dias após o procedimento, buscando tratamento relacionado a cirurgia ou procedimento antes realizado, mesmo que não diretamente ligado ao ato, a primeira instituição hospitalar não recebe pelo tratamento.

Isto tem o condão de impor aos médicos e demais profissionais que deem o melhor tratamento e atenção possíveis na ocasião do primeiro atendimento, fazendo de tudo para que o paciente possa se recuperar mais rápido, sempre focando na qualidade, evitando, assim, desperdício de dinheiro público em um novo tratamento.

- Imposição de penalidades - O Programa Obama (ACA) prevê, ainda, a aplicação de multas pecuniárias aos hospitais que tiverem alto índice de reduções dentro do ambiente hospitalar, complicações por uso prolongado de cateter e até por formação de escaras. Segundo estudos da CMS, este sistema deverá poupar aos cofres públicos cerca de 3.2 bilhões de dólares.

Outra medida adotada é a criação de programas Anti-Fraude, Anti-Abuso e Anti-Desperdício. Esses três programas visam reprimir gastos indevidos, como excessivo número de pedidos de exames por determinados médicos, utilização exagerada de determinadas próteses e controlar informações para que não haja duplicidade na realização dos exames. Para tanto, haverá um monitoramento e compartilhamento de informações entre os hospitais, principalmente dos prontuários médicos, evitando assim a repetição de procedimentos e também a adoção de tratamentos que podem complicar o quadro clínico do paciente, devido a medicações ministradas anteriormente em outro estabelecimento.

Tais programas poderiam ser implementados em nosso país? A resposta é sim. Porém, é essencial o desenvolvimento de projetos pilotos, principalmente no setor público, no qual a necessidade de mudança é premente. O passo mais importante para que seja possível idealizar alguma melhora é ter a vontade de mudar, de fazer com melhor qualidade e com maior acessibilidade.

Muitos podem dizer que o sistema americano é uma utopia, mas esse modelo está bem mais próximo de oferecer à população algo digno, uma vez que o primeiro passo foi dado, deixando para trás ideologias e interesses. Afinal, dignidade é algo que, de acordo com o presidente Barack Obama, todos trabalhamos uma vida inteira para ter.

* Ricardo Ramires é sócio da Dagoberto Advogados

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