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Sexta-feira, 19 de abril de 2024

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Da inconstitucionalidade da supressão do disposto no artigo 466 do Código de Processo Penal

A antiga redação do artigo 466 do Código de Processo Penal previa:

“Feito e assinado o interrogatório, o presidente, sem manifestar sua opinião sobre o mérito da acusação ou da defesa, fará o relatório do processo e exporá o fato, as provas e as conclusões das partes”.

O disposto no mencionado dispositivo legal possibilitava, antes do início dos debates, que os jurados tivessem acesso às provas anteriormente produzidas, previsão essa de grande utilidade para que, na condição de julgadores, pudessem começar a formar a sua convicção a respeito do fato delituoso.

Além disso, a referida previsão legal era de notória valia a fim de que os jurados pudessem, em seguida, formular adequadamente perguntas para as testemunhas em plenário, pois é inegável que o conhecimento do teor dos depoimentos colhidos anteriormente na primeira fase do procedimento escalonado do júri (sumário de culpa - judicium accusationis) auxiliava-os a elaborar perguntas úteis à formação de sua convicção.

A antiga redação do artigo 466 do Código de Processo Penal evitava que as partes utilizassem o exíguo tempo disponível para os debates para realizar a exibição das provas para os jurados.

Infelizmente, alguns operadores do direito utilizavam de forma abusiva o referido comando normativo, pleiteando a leitura da integralidade dos autos, providência enfadonha e completamente desapegada da busca da verdade, divorciada do escopo de obter um julgamento justo.

Todavia, com o nobre objetivo de evitar a leitura de peças sem relevância aos integrantes do conselho de sentença, a Lei Federal nº 11.689/08 suprimiu a expressa previsão legal de exibição, antes dos debates, das provas produzidas durante o sumário de culpa (1º fase do rito escalonado do júri) aos jurados, com exceção das provas colhidas por carta precatória e das provas cautelares, antecipadas ou não repetíveis, nos termos do disposto na novel redação do artigo 473, § 3º, do Código de Processo Penal.

Com essa modificação, as partes passaram a ter de utilizar o escasso tempo dos debates para exibir em plenário os interrogatórios e os depoimentos testemunhais da fase do judicium accusationis , os quais possuem a mesma força probatória dos elementos probantes produzidos em plenário.

A mencionada mudança procedimental dificulta a exibição das provas aos integrantes do conselho de sentença, vulnerando a busca da verdade e os princípios do contraditório e da ampla defesa. Possui ainda o demérito de dificultar o contato dos juízes populares com as provas realizadas. Enfim, uma mudança no mínimo discutível, cujos efeitos nefastos aparentemente passaram despercebidos ao filtro crítico da doutrina pátria, como se pode depreender, data venia, da leitura dos comentários expendidos pelo consagrado jurista Guilherme de Souza Nucci :

“Elimina-se, com o atual dispositivo, a leitura desgastante de peças inúteis ou de interesse reduzido para a apuração da verdade real. Portanto, ilustrando, se qualquer das partes juntar um livro ou um artigo nos autos e pretender que ele seja lido, deve o juiz indeferir o pleito. Não se trata de prova de natureza cautelar, antecipada ou não repetível. Se tiver interesse a parte, durante o seu tempo de manifestação, promoverá a leitura do que bem quiser. Porém, não se poderá obrigar os jurados a ouvir horas e horas de peças desnecessárias ao deslinde da causa. A leitura de textos não pode representar um mecanismo para ganhar tempo, cansar as partes ou servir a outros interesses escusos. Inexiste cabimento, pois, para a parte solicitar a leitura do processo 'de capa a capa', como se fosse o magistrado obrigado a determinar a leitura de cada 'termo de juntada' ou 'guia de recolhimento de custas' existente nos autos, como se fazia anteriormente à reforma trazida pela Lei 11.689/2008”.

Ocorre que, se, de um lado, a alteração sob discussão teve o mérito de impedir a cansativa e desnecessária leitura dos autos, “de capa a capa”; de outro, inviabilizou a exibição aos jurados, antes do início dos debates, de interrogatórios e depoimentos gravados em áudio e vídeo colhidos na primeira fase do procedimento do júri, os quais podem, inegavelmente, se revestir de grande importância para a formação da convicção dos julgadores populares.

É oportuno argumentar que soa demasiadamente simplória a afirmação de que as partes podem exibir tais provas durante os debates, a menos que façamos ouvidos moucos à complexidade da matéria criminal, à pluralidade de teses de acusação e de defesa e ao exíguo tempo de que as partes dispõem para os debates (duas horas e meia para cada parte ). A esse respeito, convém transcrever trechos de artigo publicado por Marcelo Rocha Monteiro, Procurador de Justiça do MP/RJ :

“É claro que não existe qualquer óbice legal à exibição de tais gravações aos jurados durante o tempo reservado a cada uma das partes para os debates. A dificuldade, porém, pode ser outra: é que, dependendo da hipótese, a extensão de tais gravações pode ser tal que sacrifique parcela importante, senão a totalidade, dos (em regra) exíguos noventa minutos destinados, a princípio, à crucial atividade de argumentação e convencimento dos jurados”.

A questão não se adstringe à quantidade de tempo despendido, como os versos de Fernando Pessoa nos oportunizam refletir: “Mestre, são plácidas todas as horas/ Que nós perdemos/ Se no perdê-las, / Qual numa jarra, / Nós pomos flores”.

Se a leitura de peças sem relevância deve ser evitada, a exibição dos vídeos dos interrogatórios e dos depoimentos obtidos em juízo na primeira fase do júri deve ser viabilizada, a não ser que o contraditório e a ampla defesa sejam mitigados e desprestigiados no tribunal popular...

As partes podem até, como sói acontecer, conseguir resumir o teor dos interrogatórios e dos depoimentos da primeira fase do júri para apresentá-los aos jurados, mas, sem dúvida, essa providência não terá o mesmo efeito da visualização pelos jurados do vídeo e do áudio dos interrogatórios e dos depoimentos, pois a valoração desses meios de prova pelos membros do conselho de sentença passa, sem nenhuma dúvida, pela análise da linguagem corporal das pessoas inquiridas.

Poderiam objetar que esse novo regramento prestigia a produção da prova produzida em plenário, na presença dos integrantes do Conselho de Sentença. Contudo, não existe nenhum dispositivo legal em nosso ordenamento a recomendar ao jurado que confira maior relevância probatória às provas realizadas em plenário, em detrimento das produzidas em juízo na primeira fase do procedimento do júri. Deveras, é cediço que, nas decisões proferidas pelo júri popular, vigora o denominado sistema da íntima convicção, pelo qual cada jurado profere seu voto sem necessidade de fundamentação, o que lhe confere liberdade para efetuar a valoração da prova, segundo os ditames de sua consciência. Aliás, a prática forense revela que os depoimentos e interrogatórios colhidos em juízo na primeira fase do procedimento do júri nas mais das vezes revestem-se de maior riqueza de detalhes do que a prova produzida em plenário, dado que são realizados em data mais próxima à da ocorrência do fato delituoso. Poder-se-ia dizer: momento ainda majestoso da memória sobre os fatos, certamente superior ao subsequente ...

Em voto exarado no julgamento da Correição Parcial nº 0246643-78.2010.8.19.0001, apreciada pela 5º Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o Desembargador Geraldo Prado, que figurou como relator no aludido feito, enumera outros relevantes motivos que justificam a necessidade de se oportunizar o acesso dos jurados à gravação em áudio e vídeo dos depoimentos realizados na primeira fase do procedimento do júri, merecendo destaque a parte em que o citado jurista aponta a utilidade da referida medida para esclarecer eventuais versões conflitantes dadas pela mesma testemunha, em ocasiões diferentes; uma na primeira fase do procedimento do júri, e outra em plenário, consoante é possível depreender dos trechos a seguir reproduzidos:

“A evolução tecnológica permite hoje uma nova forma de confronto. Não somente entre o acusado e testemunha, mas o confronto entre versões apresentadas em um depoimento. A possibilidade de gravação de depoimentos prestados judicialmente permite também que se confrontem versões apresentadas por testemunhas e réus, respeitada a busca pela verdade processual. Assim, se determinada versão da testemunha, apresentada ao juiz ou aos jurados – uma das possibilidades deste processo – discrepa daquela fornecida pela mesma testemunha ao juiz, em outra etapa procedimental, a parte poderá obter do juiz a exibição da mídia com o depoimento e desse modo confrontar a testemunha, exigindo-lhe esclarecimentos sobre os pontos divergentes. Não custa recordar que as testemunhas têm o dever de dizer a verdade. Observe-se que não se trata de criticar a prova, prática cujo leito adequado é o das alegações finais orais, mas da introdução desta prova, colhida sob o crivo do contraditório, na sessão plenária do júri, de modo a viabilizar o exame pelos jurados da credibilidade da própria testemunha. A limitação da exibição dos depoimentos produzidos em audiência ao tempo de manifestação das partes fere e interfere no direito de produção de provas. Condicionar a exibição de depoimentos anteriores ao tempo de manifestação das partes implica confundir atividades processuais inconfundíveis e prejudicar a pretensão legítima de demonstrar aos jurados os fatos que sustentam as respectivas pretensões. A matéria, todavia, não foi alvitrada pelo Ministério Público na Reclamação. Este se limitou a pleitear a transcrição das declarações registradas em mídia audiovisual e isso está vedado. Cabe, porém, indicar ao juiz, no contexto de novidade que domina o processo penal brasileiro na atualidade, que reveja sua decisão limitadora, preclusa a deliberação sobre a exibição das referidas mídias, separando o seu tempo de exibição do de argumentação em plenário.

Assim, o disposto na novel redação do artigo 473, § 3º, do Código de Processo Penal, que revogou a antiga redação do mencionado artigo 466 e inviabilizou a exibição da prova aos jurados antes do início dos debates, submetendo ao declínio os princípios do contraditório, da ampla defesa e da busca da verdade , o que o torna o referido texto legal materialmente inconstitucional, a desafiar o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, a fim de expurgar essa censurável inovação do nosso sistema jurídico.

Malgrado o cenário desalentador relatado, no Município de Chapada dos Guimarães, de recomendável geografia, a vestir incansavelmente a natureza com as suas formas exuberantes, o talentoso colega César Danilo Ribeiro de Novais, titular da Promotoria de Justiça Criminal da referida Comarca, encontrou uma outra solução para o apontado problema. Logo após a formação do Conselho de Sentença, o Ministério Público formula pedido, com fundamento no inciso VII do artigo 497 do C.P.P., para que seja suspensa a sessão pelo período necessário para que os jurados possam ter ciência do conteúdo dos autos, mediante a exibição dos depoimentos das testemunhas e do interrogatório do réu colhidos na primeira fase do procedimento do júri, pelo meio audiovisual, sem que exista a necessidade de utilizar, para esse fim, o irremediável tempo disponível para os debates.


1Primeira fase do rito escalonado do júri.

2Tribunal do Júri, Editora Revista dos Tribunais, ano 2008, página 179.

3Art. 477 do C. P. P.: “O tempo destinado à acusação e à defesa será de uma hora e meia para cada, e de uma hora para a réplica e de outro tanto para a tréplica”.

4Trechos extraídos do artigo denominado “Exibição aos jurados de depoimentos gravados no iudicium accusationis: como proceder”, publicado no seguinte endereço eletrônico: http://jus.com.br/artigos/26151/exibicao-aos-jurados-de-depoimentos-gravados-no-iudicium-accusationis-como-proceder.

5 Quando existe maior chance de a memória dos fatos estar mais viva na mente das pessoas inquiridas...

6Em clara violação aos referidos princípios constitucionais!


Márcio Florestan Berestinas - Promotor de Justiça, titular da Promotoria de Alto Araguaia.
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