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Quarta-feira, 24 de abril de 2024

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Lavagem de dinheiro sujo e delação premiada

A nova lei de lavagem de dinheiro sujo (Lei 12.683/12), proveniente de qualquer infração penal (crime ou contravenção penal), tal como a anterior, prevê a possibilidade de vários prêmios para o criminoso que colabora com a Justiça. O Estado italiano, ao perder sua capacidade de reação contra a máfia, passou a fazer acordo com os mafiosos arrependidos (“pentitismo”), que se transformaram em colaboradores da Justiça. Em troca eles começaram a ganhar prêmios penais. Nasceu, assim, a Justiça colaborativa, que abarca tanto a colaboração premiada (o criminoso confessa, mas não delata ninguém) como a delação premiada (o criminoso confessa e delata terceiras pessoas).

Três são os prêmios contemplados na nova lei: (a) redução de pena e seu cumprimento em regime aberto ou semiaberto; (b) perdão judicial e (c) substituição da prisão por pena restritiva de direitos. Comparando-se o § 5º da lei anterior com o atual notam-se várias mudanças:

(a) antes, optando o juiz pela redução da pena, o único regime inicial previsto era o aberto; agora, a lei nova prevê regime aberto ou semiaberto. Tratando-se de crime anterior (cometido na vigência da lei anterior), somente o regime aberto pode ser imposto. Neste ponto, a lei nova é prejudicial, logo, não pode retroagir. O juiz não pode fixar regime semiaberto para crime anterior, quando opta pela redução da pena em razão da colaboração ou delação premiada.

(b) a nova lei permite a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos em qualquer tempo. Essa possibilidade não existia na lei anterior. Neste ponto a lei nova é benéfica, logo, retroativa. Pode o juiz substituir a prisão por restritiva num caso antigo em que o condenado pratique qualquer ato de colaboração (dentre os previstos na lei). Mesmo na fase executiva pode haver colaboração (assim como o benefício legal).

(c) a nova lei aboliu a partícula aditiva “e” que unia o primeiro objetivo dela (apurar a infração) e o segundo (identificação dos participantes). Logo, três são agora os objetivos (autônomos) pretendidos pelo novo diploma legal: (a) apuração da infração, ou (b) identificação dos autores, coautores e partícipes ou (c) localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime. Antes, dois eram os escopos da lei: (a) apuração da infração “e” identificação dos autores etc. e (b) localização dos bens, direitos ou valores. A lei nova, neste ponto, é benéfica. Caso algum agente do fato não tenha sido beneficiado com a premiação contemplada no § 5º por não cumprir concomitantemente os dois objetivos primeiros da lei, pode agora ser beneficiado (aplicando-se retroativamente a lei nova).

São incontáveis as leis brasileiras que, hoje, abrem espaço para a colaboração ou delação premiada (lei de lavagem de capitais, lei de drogas, lei do crime organizado, lei de proteção às vítimas e testemunhas etc.). Na medida em que a criminalidade aumenta e, ao mesmo tempo, reduz a capacidade investigativa e reativa do Estado, mais este tenta premiar a colaboração do indiciado ou acusado, para melhorar (um pouco) sua efetividade. O eficientismo persecutório do Estado, como se vê, já não se fundamenta em suas próprias forças. Cada vez mais ele se torna dependente da colaboração do agente do fato.

Ocorre, no entanto, que falta uma disciplina legal do procedimento da colaboração à Justiça, e isso dificulta sobremaneira a sua compreensão e aplicação práticas. Por exemplo, na fase judicial, quem teria preferência para ser o destinatário da colaboração: o membro do Ministério Público ou o juiz? De outro lado, durante a fase investigativa (extrajudicial), a quem o agente colaborador deveria procurar: delegado, MP ou juiz?

Os entraves para a aplicação do instituto da colaboração à Justiça são enormes. O legislador brasileiro, diante da ineficiência persecutória do Estado, cada vez mais estimula a colaboração, mas nunca se deu ao trabalho de traçar regras procedimentais claras. Se o agente procura o delegado de polícia (por exemplo), caberia a este envolver no ato da colaboração o MP ou mesmo o juiz? Sabe-se que o acordo celebrado, no fundo, deve ter a participação do juiz porque compete a ele conceder os benefícios legais. Que adianta fazer acordo com o delegado e o MP se, depois, o juiz não concorda com nada do que ficou acordado?

Há uma série de cuidados e providências que devem cercar a delação, porque ela pode dar ensejo a abusos ou incriminações gratuitas ou infundadas. Urgentemente necessitamos de uma regulamentação que cuide da veracidade das informações prestadas, da exigência de checagem minuciosa dessa veracidade, da eficácia prática da delação, segurança e proteção para o delator e, eventualmente, sua família, possibilidade da delação inclusive após a sentença de primeiro grau, aliás, até mesmo após o trânsito em julgado, prêmios proporcionais, envolvimento do Ministério Público e da Magistratura, transformação do instituto da delação em espécie de acordo criminal (plea bargaining) etc.

Claro que o correto é o Estado se aparelhar cada vez mais para não necessitar da delação ou da colaboração. Mas enquanto isso não acontece, a prioridade deve ser um detalhado regramento desse instituto, para se evitar denúncias irresponsáveis, o sensacionalismo da mídia, o vedetismo das CPIs, o afoitamento de autoridades da Polícia e da Justiça etc. O que não parece suportável é o atual nível de insegurança jurídica gerada pelas delações, que têm produzido efeitos muito mais midiáticos que práticos.

*LFG – Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Codiretor do Instituto Avante Brasil e do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

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