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Quinta-feira, 18 de abril de 2024

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Imprescindibilidade da autonomia da Defensoria Pública

Paulo Lemos/Divulgação

Nossa Constituição Federal é reconhecidamente prolixa, ambiciosa e desconfiada do processo político majoritário. O constituinte, no intuito de se libertar das amarras da ditadura, fez constar no texto constitucional uma miríade de direitos individuais, sociais, políticos e econômicos, e impediu que seus sucessores os suprimissem, ante a proteção das cláusulas pétreas.

Contudo, em que pese haver a previsão de direitos como à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade, à infância, aos idosos e ao consumidor, entre tantos outros, sabe-se que nem sempre eles são protegidos e providos pelo Estado.

É nesse vácuo entre previsão e efetivação de direitos que o direito fundamental ao acesso à justiça se insere, pois, nas palavras de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação, a titularidade de direitos é destituída de sentido.

Essa responsabilidade recai sobre o sistema de justiça, composto pelo Poder Judiciário e pelas funções essenciais à justiça.

Como se sabe, o Poder Judiciário é inerte e sua provocação incumbe, afora outros, à Defensoria Pública, sobretudo em nome daqueles que não possuem condições de constituir advogado particular sem comprometer seu próprio sustento e de sua família.

Bom, para se ter uma idéia do que isso significa, importa destacar que a tabela de honorários da OAB/MT, referência a todos os advogados mato-grossenses, estabelece o valor mínimo de R$ 2.016,84 para o patrocínio de uma Ação de Despejo. Para um Habeas Corpus em matéria cível - prisão do devedor de alimentos-, o valor indicado é R$ 4.033,68. Em matéria criminal, o pedido avulso de Liberdade Provisória sem Fiança sai por, no mínimo, R$ 2.521,05.

Não se contesta aqui os valores indicados. No entanto, considerando que no Brasil mais de 130 milhões de pessoas vivem com menos de R$ 1.866,00 por mês, e em Mato Grosso cerca de 70% da população, entre viúvas, órfãos, famintos, sem-tetos, enfermos, cativos etc., a pergunta que deve ser feita é: quem deve garantir o acesso à justiça dessa grande massa de pessoas necessitadas e vulneráveis? Por conclusão lógica, a resposta só pode ser uma: a Defensoria Pública!

Consciente disso, a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos editou a Resolução AG/RES.2656 (XLI-0/11), que, partindo da premissa que o acesso à justiça, como direito humano fundamental, é, ao mesmo tempo, o meio que possibilita que se restabeleça o exercício dos direitos que tenham sido ignorados ou violados, recomenda aos Estados membros que “adotem medidas que garantam que os defensores públicos oficiais gozem de independência e autonomia funcional.”

E o fortalecimento da Defensoria Pública se passa pela garantia de sua independência, por meio do reconhecimento concreto de sua autonomia funcional, administrativa e financeira, como bem fez o constituinte derivado quando aprovou a Emenda Constitucional nº 45/04, bem como os congressistas nacionais, ante a recente aprovação, no dia 21 de novembro do corrente ano, por unanimidade, do Projeto de Lei Complementar nº 114/11.

Quanto à aprovação do PLC nº 114/11, nas palavras do presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos - ANADEP -, André Castro, isso representou: “uma das vitórias mais importantes da Defensoria Pública nos últimos tempos e permite um tratamento financeiro e orçamentário condigno com a missão de promover a defesa dos interesses da grande maioria da população brasileira. Entre as alterações relevantes trazidas por este projeto está a criação de um percentual de até 2% da receita corrente líquida dos estados, exclusivamente, destinado ao investimento nas despesas de pessoal da Defensoria Pública. Essa alteração coloca a Defensoria Pública, rigorosamente, no mesmo patamar da magistratura e do Ministério Público”.

Até porque, segundo a Carta Magna Federal, não há e não pode haver tratamento discriminatório entre o defensor, o acusador e o julgador, pois estão todos no mesmo grau de hierarquia, sendo que, apenas, cada qual cumpre uma função diferente e interdependente, sendo todas relevantes.

Agora, os ventos que tem soprado no Congresso Nacional, e que certamente encontrarão as portas e as janelas abertas no Palácio do Planalto, há que chegarem até os corredores, gabinetes e plenário da Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso e até a sala do Governador do Estado, a fim de garantir a aprovação de uma proposta orçamentária que faça frente às inúmeras necessidades da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso, para prover mais e melhores condições de trabalho, com o objetivo de levar mais e melhor justiça para todos, mediante a reabertura dos núcleos fechados no interior; o reforço aos núcleos já em funcionamento; a realização de concurso público para servidores; a ativação da Fundação Escola da Defensoria Pública; a construção de sua sede própria; a valorização dos membros e servidores; etc..

E assim o fazendo, os mandatários atuais, tanto do Legislativo quanto do Executivo, poderão acrescentar em seus currículos o notável feito de cooperarem para a universalização, com qualidade, dos serviços de assistência jurídica plena e gratuita em todo Mato Grosso - conferindo, assim, dignidade e cidadania a toda população carente do estado.

Não está a se dizer que com os recursos já disponíveis, através de uma gestão proba, transparente, eficiente e participativa não dê para fazer mais do que foi feito até aqui. Não só dá, como deve ser feito. Inclusive, mesmo com as condições atuais, não se pode abrir mão da observância dos direitos dos usuários e da qualidade e da continuidade dos serviços prestados pela Instituição.

Porém, nem a Constituição Federal e nem a Lei Orgânica da Defensoria Pública acrescentaram em sua missão institucional a função de se fazer milagres, nem mesmo com as bênçãos e a inspiração dada pelo padroeiro dos advogados e defensores públicos, Santo Ivo, que fez a opção preferencial pela defesa em juízo dos mais pequeninos, entre os pequeninos, seguindo os mandamentos do mestre Nazareno, mestre do amor ao próximo e a Deus acima de todas as coisas. Pois, aliado à boa vontade, tem que haver condições para colocá-la em prática.

Não é admissível que um único defensor público acumule todas as Varas de Fazenda Pública da Capital, ou mesmo que dois defensores assumam toda demanda dos consumidores, das Varas de Direito Bancário e, ainda, sejam responsáveis pela promoção das ações coletivas, também em Cuiabá, apenas para citar alguns exemplos reais. Sem falar no trabalho solitário de muitos defensores realizado em diversas comarcas do interior, muitas das vezes sob o manto de condições precárias. E mais grave do que tudo isso é ter comarcas onde as portas da Defensoria estão fechadas para cerca de meio milhão de mato-grossenses.

Portanto há que se mudar esse quadro sofrível e desalentador. Dar um grande passo de cidadania e dignidade humana. E isso é possível! Basta ter vontade política, compromisso com o interesse público primário da sociedade e sensibilidade com a dor do próximo.

E para tanto, o adequado é uma previsão orçamentária na casa de, no mínimo, 1,5 até 2% da receita líquida do Estado; e não na mera atualização da previsão orçamentária do corrente ano, que representa uma participação abaixo de 1%.

PAULO LEMOS – Ouvidor-Geral da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso, advogado eleitoralista e administrativista, Secretário do Conselho Diretor do Instituto Beneficente Boas Novas de Responsabilidade Social e ex-Vice-Presidente Mato Grosso e Mato Grosso do Sul da UNE.

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