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STF reafirma foro funcional após mandato ou exercício de função de Estado
Autor: Fernando Faria
07 Mai 2025 - 08:00
No julgamento conjunto do HC 232.627/DF e do Inq 4.787, o STF redesenhou os limites do foro por prerrogativa de função. Por maioria de 7 × 4, assentou a tese de que “a prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício.” Com isso, o STF definiu que a competência permanece nos tribunais sempre que a infração penal estiver vinculada ao desempenho das atribuições institucionais, independentemente da continuidade do mandato ou exercício de função de Estado.
A decisão – aplicável não apenas a parlamentares, mas também a ministros de Estado, secretários estaduais e demais autoridades com prerrogativa de foro – foi descrita como um reposicionamento hermenêutico no campo da competência penal. Ao delimitar a incidência do foro a partir da natureza funcional do fato, mesmo após o encerramento do exercício do cargo ou função, o STF indicou a intenção de oferecer maior estabilidade ao sistema de justiça penal, reforçando a previsibilidade normativa e a continuidade processual, sem afastar o princípio da responsabilidade.
Desde 2018, prevalecia na jurisprudência do STF o entendimento de que a prerrogativa de foro cessava (automaticamente) com o término do mandato ou da função pública, mesmo nos casos em que os atos sob investigação apresentavam vínculo direto com o exercício legítimo das atribuições do cargo anteriormente ocupado. Esse entendimento foi consolidado a partir da decisão proferida na AP 937, que restringiu o alcance do foro especial à duração do mandato e à pertinência funcional do fato.
Essa linha ficou conhecida como “regra da contemporaneidade”. Partia‑se da premissa de que a prerrogativa de foro estava vinculada exclusivamente ao exercício atual do cargo, de modo que a cessação da função pública implicaria o deslocamento da competência para a primeira instância. Embora a diretriz tivesse como fundamento a contenção de eventuais abusos e a preservação da isonomia processual, seus desdobramentos práticos evidenciaram dificuldades operacionais, como fragmentação da marcha processual, alternância de competência entre instâncias e insegurança quanto à unidade da instrução, com reflexos sobre a duração razoável do processo penal.
Na prática, a cada exoneração, renúncia ou encerramento de mandato – fosse de um parlamentar federal, de um ministro de Estado ou de um secretário estadual – reabria‑se a controvérsia sobre a competência. Esse cenário produzia efeitos processuais significativos: eventuais nulidades, reinício de fases instrutórias já concluídas e, em alguns casos, os limites da prescrição. A Justiça penal, nesse contexto, via‑se diante de um quadro de instabilidade procedimental, caracterizado por remessas sucessivas de autos, interrupções da marcha processual e indefinições quanto ao juízo natural responsável por conduzir a persecução penal até o julgamento.
Ao firmar a nova tese, o STF promoveu uma mudança de enfoque: a natureza funcional do fato passou a prevalecer sobre o critério temporal da permanência no cargo. Segundo o entendimento majoritário, nos casos em que a infração penal estiver relacionada ao exercício de atribuições típicas da função pública, a competência permanece no tribunal competente à época do exercício, mesmo que o agente não esteja mais no cargo ou função. O relator, ministro Gilmar Mendes, destacou que a diretriz procura evitar que alterações voluntárias ou estratégicas na situação funcional do agente – como renúncias, exonerações ou não reeleições – possam gerar deslocamentos artificiais de competência, com impacto potencial sobre a imparcialidade e a unidade do processo penal. Nessa perspectiva, o foro funcional é concebido não como prerrogativa pessoal, mas como mecanismo de proteção institucional, voltado à preservação da integridade decisional do Estado no julgamento de agentes públicos.
Importa ressaltar que esta nova decisão do STF não foi concebida como um alargamento indiscriminado da prerrogativa de foro. A tese fixada reafirma seus contornos objetivos, condicionando sua incidência à existência de nexo funcional entre o fato supostamente delituoso e o exercício legítimo das atribuições públicas. O foro especial, segundo o novo entendimento, continua restrito a crimes cometidos no desempenho do cargo e em razão direta das competências ou atribuições institucionais exercidas. Dessa forma, condutas estranhas à função, bem como fatos anteriores à investidura, permanecem submetidos à jurisdição comum, afastando interpretações que vinculem a prerrogativa a critérios de natureza pessoal ou subjetiva (privilégio).
Dessa forma, condutas que não guardam pertinência com o exercício funcional – ou que tenham sido praticadas antes da investidura no cargo – permanecem, conforme expressamente reconhecido, sob a jurisdição ordinária de primeiro grau. Pela leitura dos votos dos ministros, entende-se que a reinterpretação promovida pelo STF não tem como finalidade expandir o escopo do foro por prerrogativa, mas sim recalibrar sua aplicação à luz de sua finalidade constitucional, impedindo que sua utilidade se perca diante de critérios meramente temporais ou de eventuais estratégias processuais que visem alterar artificialmente a competência. Trata‑se, assim, de uma delimitação funcional, que busca preservar o equilíbrio entre a proteção institucional e o princípio do juiz natural.
Consolida‑se o critério funcional como parâmetro delimitador da competência, o que tende a oferecer maior previsibilidade à acusação, continuidade lógica à instrução penal e estabilidade processual à defesa. Ao evitar a alternância sucessiva de instâncias – com remessas que interrompem e reiniciam fases processuais –, a nova orientação contribui para reduzir a desorganização da persecução penal e mitigar os riscos da fragmentação processual. Em consequência, reforça‑se a preservação de garantias como o contraditório, a ampla defesa e a duração razoável do processo, favorecendo a organicidade judicial e a integridade procedimental.
Sob a perspectiva da advocacia criminal, a nova diretriz firmada pelo STF pode ser interpretada como relevante pelo seu potencial de reafirmar garantias constitucionais que estruturam o processo penal de matriz acusatória, porque preserva a continuidade da instrução criminal, a previsibilidade quanto ao juízo competente (juiz natural), além da proteção contra fragmentações que possam comprometer o exercício do contraditório e da ampla defesa (plena). Essa leitura sugere que a estabilização da competência pode contribuir para um ambiente processual mais coerente e menos sujeito a recomeços instrutórios.
Em primeiro plano, a manutenção da competência funcional tem sido mencionada como fator relacionado à continuidade da instrução penal, ao evitar fragmentações artificiais que podem comprometer a coerência procedimental. A alternância de jurisdição, em decorrência do desligamento do cargo, frequentemente resultava na repetição de atos já realizados, na reinquirição de testemunhas, na perda de consistência probatória e na possibilidade de decisões divergentes entre instâncias distintas. Nesse cenário, a estabilização da competência é apresentada como medida capaz de preservar a organicidade do processo e de atenuar riscos de nulidade e dispersão interpretativa.
Em segundo, o entendimento firmado pelo STF é interpretado como reforço ao princípio do juiz natural – não apenas sob o viés formal da designação prévia, mas enquanto vínculo estável entre o fato funcional e a autoridade jurisdicional constitucionalmente competente. Ao afastar a possibilidade de alteração da competência em razão de eventos supervenientes, como exonerações estratégicas, renúncias voluntárias ou mudanças de mandato, a diretriz procura resguardar o processo contra interferências casuísticas. Além disso, ao consolidar um critério de competência baseado na função exercida no momento do fato, a decisão tende a favorecer um cenário processual mais previsível e equilibrado, com possíveis benefícios tanto para a acusação quanto para a defesa – aspectos vinculados a uma concepção de justiça processual material.
Este entendimento é de incidência imediata e obrigatória adesão por todos os Tribunais. Por outro lado, é relevante observar a abordagem metodológica adotada pelo STF ao modular os efeitos da nova interpretação. Em respeito à segurança jurídica e à proteção da confiança legítima, foram preservados os atos processuais praticados sob a vigência da jurisprudência anterior. A aplicação imediata da nova tese aos processos ainda em curso – com ressalva expressa aos casos já encerrados ou estabilizados – demonstra a preocupação com a continuidade normativa e com o respeito à boa‑fé processual, valores centrais para o funcionamento regular do sistema de justiça.
Consoante salientado nos votos, essa escolha sinaliza uma transição normativa pautada pelo equilíbrio entre inovação interpretativa e respeito aos marcos institucionais previamente estabelecidos. Ainda que existam divergências na comunidade jurídica quanto à extensão ou aos critérios de incidência do foro por prerrogativa, a decisão reafirma o compromisso com a previsibilidade das decisões judiciais e com a integridade sistêmica do ordenamento jurídico. Tais valores são considerados fundamentais para a preservação da confiança pública nas instituições, sustentam a credibilidade do Poder Judiciário e reforçam a autoridade de suas decisões no contexto do Estado Democrático de Direito.
A decisão do STF não é apresentada como retrocesso institucional nem, em sentido oposto, como ampliação indevida de privilégios. Enquadra‑se, antes, como mudança de orientação jurisprudencial dirigida a enfrentar efeitos práticos observados no modelo anterior, como a fragmentação de competência e a instabilidade na persecução penal de agentes públicos. O foro por prerrogativa de função, enquanto exceção à regra geral de competência, permanece sujeito a interpretação restritiva e fundada em critérios objetivos. A nova diretriz reafirma essa lógica ao condicionar a incidência do foro à existência de vínculo funcional direto entre o fato investigado e o exercício da função pública, indicando a intenção de garantir um julgamento compatível com parâmetros constitucionais de imparcialidade, continuidade processual e segurança jurídica.
Nessa perspectiva, a orientação não tem como efeito inviabilizar a responsabilização de agentes públicos, nem configura blindagem institucional. Trata‑se de redefinir critérios de competência com base na vinculação funcional entre o fato e o cargo ocupado à época. O objetivo declarado é assegurar que infrações relacionadas ao exercício legítimo de funções públicas sejam apreciadas por órgãos jurisdicionais colegiados previamente definidos pela Constituição Federal, contribuindo para a estabilidade processual e para a previsibilidade institucional. Em um contexto marcado por tensões entre os Poderes e por desafios à integridade das instituições, a fixação de parâmetros objetivos e finalísticos para o foro funcional se apresenta como um ponto de referência na busca por coerência normativa e respeito às garantias do devido processo legal.
Em processos de alta complexidade, marcados por foro especial, tribunais superiores e exposição pública, a defesa técnica qualificada é fator decisivo. A advocacia criminal de excelência domina a lógica do procedimento, constrói estratégias juridicamente sofisticadas e atua com firmeza diante da pressão midiática. Mais que garantir direitos fundamentais em cenários sensíveis, exerce papel institucional relevante: analisa criticamente as provas, sustenta teses com densidade e contribui para a legitimidade do julgamento, reafirmando que a força da justiça penal se mede, também, pela robustez da defesa.
Fernando Faria é advogado com expressão nacional. Fez parte do MPMT entre os anos de 2008 – 2019, acumulando experiência em investigação criminal e controle probatório. É especialista em defesas de alta complexidade, crimes econômicos, prerrogativa de foro e causas em tribunais. Escreve e ministra aulas/palestras sobre diretos e garantias constitucionais.