Artigos
O fantasma dos RIFs sem autorização judicial
Autor: Fernando Faria
03 Jan 2025 - 08:00
Arquivo Pessoal
Imagine um cidadão cujas movimentações financeiras são vasculhadas sem autorização judicial. Apesar de não haver indícios claros de envolvimento em crimes, seus dados bancários e fiscais são acessados de forma indiscriminada. Esse cenário, que viola gravemente a presunção de inocência e esfacela o direito à privacidade, expõe os perigos do uso de Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) sem a devida supervisão judicial.
A proteção à intimidade, à vida privada e ao sigilo bancário/fiscal compõe o núcleo essencial dos direitos fundamentais, consagrados em diversos dispositivos da Constituição da República (art. 5º, X, XII, LIV e LV). O princípio da reserva de jurisdição reforça essa proteção, exigindo que qualquer restrição a esses direitos seja previamente autorizada e controlada pelo Poder Judiciário.
A importância do controle judicial
O controle judicial prévio é indispensável para proteger direitos fundamentais e assegurar a legitimidade do processo penal. Não é mero formalismo, mas um mecanismo de transparência, que exige que a quebra de sigilo seja fundamentada em indícios mínimos de autoria e materialidade.
Esse controle é uma expressão concreta do sistema acusatório, que confere ao Poder Judiciário a função de mediador imparcial entre a acusação e a defesa. Importante salientar que, em um Estado de Direito, a acusação é limitada, enquanto a defesa é plena.
Sem supervisão judicial, não há justiça, mas possíveis abusos.
A supervisão judicial não só garante o respeito à legalidade e à proporcionalidade das medidas investigativas, mas também fortalece a confiança no sistema de justiça. Sem ela, consolida-se um ambiente fértil para abusos de poder, como investigações desproporcionais ou desnecessárias, que não apenas violam os direitos dos investigados, mas também enfraquecem a credibilidade das instituições públicas.
Decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça, como no HC 943.710, enfatizam que a requisição direta de RIFsao COAF, sem autorização judicial, viola a cláusula de reserva de jurisdição. Dados financeiros obtidos sem essa supervisão tornam-se ilícitos, contaminando o processo conforme a “teoria dos frutos da árvore envenenada”.
Consequentemente, provas derivadas dessa origem devem ser desentranhadas dos autos, nos termos do art. 157 do Código de Processo Penal. Isso reforça que os RIFsobtidos sem autorização judicial são provas nulas e sua utilização compromete a validade de toda a persecução penal.
A supervisão judicial também viabiliza o contraditório — ainda que diferido, quando necessário — e protege o equilíbrio entre as partes. Doutrinadores como Aury Lopes Jr. e Geraldo Prado reforçam que essa intervenção é essencial para assegurar a paridade de armas no processo penal. Essa paridade não é apenas uma garantia formal, mas uma condição para que o acusado tenha chances reais de defender-se de maneira efetiva.
Ampliação indevida do escopo investigativo
O uso de ferramentas como os RIFs pode resultar em ampliação indevida do escopo investigativo, abrangendo informações de terceiros sem relação direta com os fatos apurados. Essa prática viola o princípio da proporcionalidade, que exige que as medidas sejam adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito.
A ampliação desmedida do escopo investigativo também suscita questões éticas e jurídicas. Ao extrapolar os limites da investigação, o Estado pode acabar atingindo não apenas direitos de investigados, mas também de terceiros completamente alheios ao fato sob apuração. Isso compromete a legitimidade das provas e abre caminho para desvios investigativos, como o uso de dados sensíveis para fins diversos dos inicialmente declarados.
Investigações ilimitadas são sinônimo de arbítrio.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 990, destacou a necessidade de critérios objetivos para o compartilhamento de dados sigilosos. A ausência de delimitação pode levar à nulidade das provas e ao descrédito nas instituições, pois a sociedade teme um Estado que viola direitos fundamentais em nome do combate ao crime. Essa abordagem também fragiliza a percepção de imparcialidade e isenção das autoridades, alimentando a desconfiança na justiça.
Fishing expedition: a busca genérica e indiscriminada
Uma das mais graves formas de abuso investigativo é a fishing expedition, em que a coleta de dados ocorre sem delimitação clara. Essa prática subverte o sistema acusatório e compromete o devido processo legal, pois ignora a necessidade de indícios mínimos para justificar a invasão de sigilo.
O termo fishing expedition é usado para descrever uma abordagem genérica e exploratória, onde o objetivo não é encontrar provas de um crime específico, mas sim colher informações que possam, eventualmente, ser usadas contra o investigado ou outros alvos. Isso contradiz os princípios básicos do sistema acusatório, que pressupõe investigações direcionadas e delimitadas.
No julgamento do RHC 203.373, o Superior Tribunal de Justiça sublinhou que a ausência de limites claros na coleta de dados compromete a legitimidade do processo investigativo, pois viola a presunção de inocência ao permitir a reunião de provas sem qualquer fundamento específico.
Nesses casos, a autoridade investigante se vale de uma espécie de “rede de pesca” lançada de forma arbitrária, angariando provas indefinidas e alcançando pessoas que, muitas vezes, não guardam relação com os fatos apurados.
Essa conduta fere de modo frontal o devido processo legal, uma vez que afasta a necessidade de existência de um justo motivo (justa causa) para cada ato restritivo de direitos. RIFs obtidos dessa forma são provas manifestamente nulas e contaminam irremediavelmente o processo, levando a anulações frequentes de investigações brasileiras.
Consequências para o processo penal
A violação dos requisitos de reserva de jurisdição, proporcionalidade e delimitação de alvos resulta em nulidade das provas e pode comprometer toda a persecução penal. Essa nulidade decorre da incompatibilidade dessas práticas com os direitos fundamentais, o que torna ilegítima qualquer prova obtida a partir de fontes contaminadas.
Sem respeito às garantias constitucionais, o processo é vazio de legitimidade.
A nulidade das provas tem efeitos profundos no sistema penal. Quando se baseia em elementos obtidos de forma ilícita, a acusação perde sua sustentação, e o processo deve ser anulado. Além disso, a utilização de meios investigativos abusivos prejudica a confiança da população nas instituições públicas, minando a credibilidade do sistema de justiça.
A segurança jurídica é essencial para que a população confie no Estado de Direito. Garantir a observância das garantias constitucionais não é proteger criminosos; é proteger cada cidadão de um Estado que, sem limites, se torna o maior violador de direitos.
A insistência em práticas que resultam na nulidade de provas desestimula a inovação no âmbito investigativo e perpetua métodos inadequados, contrariando o objetivo maior do sistema penal: a realização de uma justiça efetiva, pautada pela legalidade e pelo respeito aos direitos humanos.
A necessária maturidade democrática
Para evitar a anulação de processos e garantir a eficiência investigativa, é essencial que o Judiciário exerça sua função de guardião dos direitos fundamentais, exigindo autorização prévia e fundamentada para a obtenção de RIFs, estabelecendo limites objetivos e mecanismos de transparência.
A maturidade democrática exige que as instituições ajam com responsabilidade e respeito às garantias constitucionais. Isso significa reconhecer que a eficiência no combate ao crime não pode se sobrepor aos direitos fundamentais. Um processo penal sólido e confiável é aquele que combina rigor investigativo com o respeito absoluto às garantias individuais.
Em Mato Grosso, como em outros estados, é vital que a modernização das investigações caminhe lado a lado com o respeito às liberdades públicas. Eficiência e garantias não são valores antagônicos, mas complementares para um processo penal sólido e confiável.
Concluir sem a observância das garantias constitucionais não é promover justiça, mas perpetuar um sistema inquisitório que afasta a sociedade do processo penal. O respeito às liberdades fundamentais e à legalidade não é uma mera formalidade, mas a essência de um Estado que valoriza a cidadania e protege seus indivíduos contra abusos de poder.
O combate ao crime e à corrupção deve respeitar os ritos legais, pois qualquer desvio dessa trajetória compromete não apenas a legitimidade do processo, mas também a confiança da população no sistema de justiça. Um processo penal que despreza as garantias constitucionais abre caminho para a arbitrariedade e o enfraquecimento das instituições democráticas, gerando uma sociedade refém de um poder descontrolado.
Justiça sem direitos não é justiça, é opressão mascarada de legalidade. Somente ao garantir a plena observância das garantias constitucionais será possível construir um sistema de justiça verdadeiramente eficiente, firme e resiliente, imune às fragilidades de práticas abusivas e comprometido com a dignidade da pessoa humana. O compromisso com um processo penal justo e equilibrado é, acima de tudo, um compromisso com a democracia e a construção de uma sociedade verdadeiramente livre e igualitária.
A complexidade de casos envolvendo RIFs e outras questões sensíveis no processo penal exige a atuação de um advogado criminal altamente especializado. Esse profissional, com conhecimento técnico aprofundado e experiência prática, é capaz de identificar nulidades, proteger os direitos fundamentais e garantir que a defesa seja exercida de maneira plena e eficaz. Em um cenário onde as garantias constitucionais são frequentemente desafiadas, contar com uma defesa qualificada é a diferença entre um processo justo e uma injustiça institucionalizada.
Fernando Faria é advogado com atuação em todo território nacional, notadamente em Mato Grosso, São Paulo e Brasília. Sua trajetória profissional inclui a condução de casos de alta complexidade e repercussão nacional.