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Sexta-feira, 29 de março de 2024

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Fim da confidencialidade transforma advogado em espião

Alberto de Paula Machado/Divulgação

A recente edição da Lei 12.683/2012 (Nova Lei de Lavagem de Dinheiro) traz a tona o importante tema do sigilo profissional. Entre outras regras com semelhante propósito, destaca-se na referida lei o artigo 9º, XIV, que estabelece a obrigatoriedade de pessoas físicas ou jurídicas informarem ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) sobre movimentações financeiras suspeitas que cheguem ao seu conhecimento.

Segundo o texto da lei, “as pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, em operações”, têm o dever de informar sobre a conduta delituosa de seus clientes.

De plano surge a indagação acerca das pessoas físicas ou jurídicas que efetivamente estariam obrigadas a prestar as informações aos órgãos de fiscalização, uma vez que inúmeras são as profissões que têm na confidencialidade elemento essencial da atividade.

Convidado a palestrar sobre o tema Secreto Profissional y Etica de La Abogacia, na cidade do México em abril de 2010, tive oportunidade de manifestar a preocupação acerca do assunto, especialmente pelo fato de que em vários países começavam a surgir legislações relativizando o dever de sigilo imposto aos advogados na relação com o seu cliente.

Na ocasião lembrei que tal como o padre com o fiel e o médico com o paciente, a confidencialidade é da essência da atividade profissional dos advogados.

Sem a segurança de que o que falará ao padre não cairá em domínio público não haveria a confissão dos pecados. O chamado sigilo sacramental é previsto expressamente no Código Canônico:

983 § 1. El sigilo sacramental es inviolable; por lo cual está terminantemente prohibido al confesor descubrir al penitente, de palabra o de cualquier otro modo, y por ningún motivo.

§ 2. También están obligados a guardar secreto el intérprete, si lo hay, y todos aquellos que, de cualquier manera, hubieran tenido conocimiento de los pecados por la confesión.

984 § 1. Está terminantemente prohibido al confesor hacer uso, con perjuicio del penitente, de los conocimientos adquiridos en la confesión, aunque no haya peligro alguno de revelación.[1]

Para os médicos, por sua vez, o sigilo profissional integra a própria a história da profissão.

É conhecido o juramento de Hipócrates, do século V AC : “Juro por Apolo, médico, por Esculápio, e os deuses e deusas, tomando-os como testemunhas que de tudo o que veja ou ouça em sociedade, no exercício da minha profissão ou fora dela, calarei o que nunca tenha necessidade de ser divulgado, tomando, nessa circunstância, a discrição como um dever.”

No Brasil o Código de Ética Médica tem disposição expressa neste sentido. O novo código, que entrou em vigor em abril de 2010, trata o tema da seguinte forma:

Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.

Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.

O Código Internacional de Ética Médica traz semelhante regra. [2]

Observa-se que as três atividades profissionais referidas têm como característica o fato de que os profissionais são depositários de informações pessoais e sigilosas e de que a sua divulgação viola direitos.

A situação do jornalista, a quem é assegurado o sigilo de fonte, a despeito de ter alguma semelhança, guarda características peculiares.

Cotejando a situação das três primeiras atividades, o médico, o padre e o advogado e confrontando com o caso dos jornalistas, podemos concluir que muito embora o sigilo esteja envolvido nas quatro situações, juridicamente são distintas as situações.

O bem juridicamente tutelado é diverso, vejamos as hipóteses:

O sigilo profissional protegido pelo artigo 154 do Código Penal tem como objetivo proteger segredo alheio, obtido licitamente, durante o exercício de determinada atividade profissional. A divulgação do segredo implicará em violação à intimidade, à vida privada, à honra ou à imagem das pessoas;

a) Aos advogados, o dever de sigilo, além de violar a intimidade do cliente como mencionado no item anterior, deteriora o exercício do direito constitucional de defesa que a todos é garantido.

b) Aos jornalistas, o sigilo da fonte tem como escopo permitir que as informações possam ser levadas livremente a cidadão, é o direito à informação e a liberdade de imprensa que estão sendo protegidos.
No ordenamento jurídico brasileiro, não existe norma constitucional ou ordinária que obrigue o comunicador a preservar a identidade da fonte de informação.

De acordo com a Constituição Federal, o artigo 5º, inciso XIV, apenas confere ao jornalista a faculdade de exercer ou não o sigilo da fonte, ou seja, o jornalista não está obrigado a preservar a sua fonte de informação: “É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional” (artigo 5º, inciso XIV). Portanto, o bem juridicamente protegido no caso do sigilo de fonte para os jornalistas é a liberdade de imprensa e o direito de informação.

Importante destacar também que o sistema legislativo brasileiro reproduz norma, que também vigora em vários outros países, protetora do sigilo mesmo nas hipóteses em que o profissional for convocado a servir de testemunha em processo judicial, assegurando a eles o direito de se recusar a depor sobre fatos que tenham conhecimento em decorrência do exercício profissional ( inciso II, art. 406, CPC):

“Art. 406 — A testemunha não é obrigada a depor sobre fatos : I — a cujo respeito, por estado ao profissão, deva guardar sigilo.”

Idêntica regra há no Código Civil de 2002 que estabelece que ninguém é obrigado a depor sobre fato que deva guardar segredo por profissão (artigo 229). Esta regra repete o que já dispõe o artigo 347, II, do Código de Processo Civil.

O Supremo Tribunal Federal enfrentou a questão do sigilo do advogado em várias oportunidades firmando entendimento de que “é direito do advogado recusar-se a informar aquilo que constitua sigilo profissional. Se ele considera que constitui sigilo profissional o problema relacionado a origem, ou como lhe chegou às mãos, o documento utilizado a favor de seu cliente, não está ele obrigado a depor como testemunha sobre tal fato. Ao advogado se reconhece o direito, aliás um dever, de esclarecer apenas e tão-só os fatos que a sua consciência ética e a fé do seu grau autorizem-no a fazê-lo” (STF, HC 56.563-8-SP, DJ 28.12.78).

A Lei 8.906/94 estabelece no artigo 6º, inciso XIX, como dever do advogado: Recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional.

No âmbito internacional semelhantes são as regras como, por exemplo, o disposto no Código de Deontologia dos Advogados da Comunidade Europeia, segundo o qual: É da essência da missão do advogado que ele seja depositário de segredos do seu cliente e destinatário de informações confidenciais. Sem a garantia de confidencialidade não pode haver confiança. O segredo profissional é, assim, reconhecido como o direito e o dever primeiro e fundamental do advogado.[3]

A violação ao sigilo profissional implica, em vários países, em ilícito penal. No Direito brasileiro há um tipo penal específico àquele que revela sem justa causa segrego de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem (artigo 154, do Código Penal).
Importante salientar que a norma penal é expressa ao referir-se à inexistência de justa causa para a revelação do segredo profissional, o que significa dizer que há hipóteses em que o profissional pode quebrar o sigilo sem que isso implique em tipificação do ilícito.

O Código de Ética dos Advogados no Brasil prevê duas hipóteses em que a justa causa para a revelação do segredo estaria configurada: a) grave ameaça ao direito à vida ou à honra; b) quando o advogado se vê afrontado pelo próprio cliente e em defesa própria tenha que revelar segredo.

Apenas nestas hipóteses, segundo o código de ética da advocacia brasileira, estaria o advogado autorizado a utilizar informações obtidas em decorrência de confidência do cliente.

Quando se fala em prerrogativas da advocacia — e o sigilo profissional é uma delas —, o que se está a proteger é o direito de o cidadão bem defender-se perante eventual acusação ou ação judicial que lhe seja movida. A limitação a qualquer das prerrogativas estabelecidas em lei representa atentado contra a cidadania.

Diante de todas as considerações acima e pelas induvidosas peculiaridades que são próprias da advocacia, é absolutamente lícito concluir que o segredo revelado por cliente não pode ser quebrado por profissional que tem a missão de exercer a defesa em favor do cidadão, pois este tem o seu direito assegurado pela Constituição Federal.

Por estas razões, as disposições contidas na Lei 12.683/2012 são incompatíveis com a profissão regulamentada pela Lei 8.906/94. A lei da advocacia, sendo lei especial, se sobrepõe a lei geral que disciplina a obrigatoriedade de comunicação aos órgãos de fiscalização.

Admitir hipótese contrária seria transformar o defensor de direitos e do Estado garantista em espião, delator e traidor do próprio cliente.
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[1] CODIGO DE DERECHO CANONICO, Promulgado por la Autoridad de Juan Pablo II, Papa. Dado en Roma, el dia 25 de Enero de 1983.
[2] Adotado pela 3ª Assembleia-geral da Associação Médica Mundial, em Londres, Inglaterra, em Outubro de 1949. Revisto pela 22ª Assembleia Médica Mundial, em Sydney, Austrália, em Agosto de 1968. Novamente revisto pela 35ª Assembleia Médica Mundial, em Veneza, Itália, em Outubro de 1983.
[3] Segredo profissional, ponto 2.3.1 do Código de Deontologia dos Advogados da Comunidade Européia, aprovado por unanimidade na sessão plenária do CCBE, em Strasburgo, a 28 de outubro de 1988.

Alberto de Paula Machado é vice-presidente do Conselho Federal da OAB e ex-presidente da OAB-PR.

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