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Sábado, 20 de abril de 2024

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O Supremo Tribunal Federal e o ensino religioso nas escolas públicas

É difícil para nós, modernos, imaginarmos que, nos primórdios da civilização, a religião era doméstica. Se trouxéssemos um humano desses tempos primevos para os dias atuais, quão estarrecido ele ficaria ao ser confrontado com a miríade de religiões, crenças e templos ao alcance de todos. Hodiernamente, para ser religião (e politicamente correta) necessário o preenchimento de dois requisitos: que ela anuncie apenas um único deus e, dirigir-se e ser acessível a todos, indistintamente.

O historiador Fustel de Coulanges, em sua magnífica obra “Cidade Antiga” relata que a religião antiga não obedecia tais indicadores. “Além de não dar à adoração dos homens um só deus, os seus deuses não aceitavam indistintamente a adoração de todos e quaisquer humano. (...) Nessa religião primitiva, cada um dos seus deuses não podia ser adorado por mais de uma família”. Os antigos eram sábios.

As religiões transformaram-se ao longo das eras. Ao serem incorporadas aos Estados, perderam o caráter privado e tonaram-se entes híbridos. O contado com a política e o poder, característicos da esfera estatal, consolidaram as religiões como fenômeno de massa. A historiografia apresenta essa dicotomia religião / estado como um espectro que vai da união indissolúvel dos entes até a separação. Entre os extremos existem inúmeros tons de cinza, coforme podemos conferir nas nações atuais.

O Brasil, tradicionalmente um país de matriz cristã devido a colonização por Portugal, navegou até suavemente nessa relação (não somos um povo extremista / fundamentalista no aspecto religioso, comparada a outras nações). Talvez fosse esse um dos motivos pelo qual nossa sociedade não dê muita atenção a questões como estado laico e suas implicações. Vemos com naturalidade a profusão de símbolos e determinadas práticas de cunho religioso (principalmente do cristianismo) nos espaços públicos. Quando estas questões são colocadas em evidência (sejam via judiciário, imprensa, legislativo ou comentários em rede social) não sabemos muito bem como lidar com o tema e, neste momento, aquela suavidade citada, adentra para arroubos de intolerância, discussão rasa e, não poucas vezes, atos de selvageria.

Particularmente, considero até natural todo esse processo. As religiões, por muito tempo, foram certezas intocáveis. Embora na grécia antiga, algumas correntes filosóficas já colocassem em dúvida tais dogmas, foi com o Iluminismo e a crescente profusão de filósofos ateus, aliadas às conquistas de liberdade de expressão e separação oficial entre igreja e estado que muitas vozes começaram a questionar as premissas teológicas e formarem suas próprias convicções.

Voltanto ao Brasil, um comando normativo positivado em nossa longa e prolixa Constituição ainda estava, podemos dizer, “em aberto”. Trata-se do § 1º do art. 210 que assim prevê: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”.

Pois bem, o STF em julgamento de 27/09/17 da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4439, na qual a Procuradoria-Geral da República (PGR) questionava o modelo de ensino religioso nas escolas da rede pública de ensino do país, em apertada votação (6x5) decidiu que tal ensino pode ser confessional, ou seja, ofertado de acordo com os dogmas de alguma religião específica.

Sem entrar no mérito (os votos dos Ministros estão disponíveis no site do Supremo) a grande celeuma que os Magistrados tiveram que apreciar era exatamente o papel de um Estado, que a própria Carta Magna estabelece como laico (país com neutralidade no campo religioso) e a possibilidade de que este mesmo Estado oferte uma disciplina nas escolas públicas de ensino religioso confessional. Havemos de concordar não ser uma tarefa das mais fáceis.

Se você é católico e seu filho(a) estuda em escola pública, não deve estar muito preocupado e até mesmo achando insana toda essa discussão. Poderá também alegar que ninguém foi prejudicado, uma vez tratar-se de matéria optativa. Como dizemos na democracia: é seu direito pensar assim.

Outros também poderão argumentar: “que mal há? Melhor as crianças aprenderem alguma religião que contribua para a formação do caráter do que ficarem a mercê de outras ideologias”. Igualmente é “seu direito” ter esta visão ou perspectiva do problema.

Em que pese a impossibilidade técnica, didática e pedagógica do Estado operacionalizar este dispositivo sem afrontar outros princípios constitucionais (estado laico, igualdade, liberdade de crença, isonomia, equitatividade etc) ainda fica uma questão: qual confissão religiosa será ofertada em forma de disciplina facultativa? O Cristianismo, você apressadamente responde, afinal, mais de 90% da população alega seguir tal religião. Ignorando que os outros 10 % também teriam direito de receberem a oportunidade de disciplina semelhante, ainda pergunta-se: considerando-se que existem centenas de igrejas cristãs e suas incompatibilidades teológicas, qual será premiada como a “oficial” para tal disciplina? Será que haverá uma espécie de “concílio de nicéia” (convocado pelo Imperador romano Constantino em 325 d.C. para pacificar as diversas correntes do cristianismo primitivo) para definir-se qual teologia e que dogmas integrarão o conteúdo da disciplina? Dentre os milhares de temas tratados na Bíblia Judaico/Cristã e suas interpretações, qual será levado a fazer parte da disciplina? Essa disciplina poderá ser ofertada aos sábados? Por que não? Serão tratados apenas valores genéricos? Enfim, como será construída essa grade curricular?

Perdoe-me o leitor se levantei questões inúteis. Sou um ardoroso defensor da liberdade de crença e opinião. Contudo, humildemente, opino que religião deveria ficar no ambiente privado e/ou das Igrejas que recebem voluntariamente seus fiéis e, assim, formam um importante segmento da sociedade que tem um papel relevante de auxílio ao Estado em suas inúmeras atribuições.

Decisão judicial é para ser cumprida. Assim, aguardemos para ver como o Estado, via sistema de educação, vai comportar-se sob essa nova interpretação dada à Constituição.

Por fim, resta apenas dizer que os antigos sabiam o que estavam fazendo!
 

Julio Cezar Rodrigues é economista e advogado (rodriguesadv193@gmail.com)
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